Enquanto o Congresso americano está em vias de votar a autorização para um ataque à Síria do ditador Bashar Al Assad, o brasileiro se vê às voltas com o imbróglio do voto secreto, após a vergonhosa cafajestagem da semana passada, quando a Câmara Federal teve a audácia de manter o mandato de um morador da Penitenciária da Papuda, inaugurando a era da representação parlamentar nos presídios. Os dois temas, bastante distintos, demonstram bem o tipo de problema contemporâneo relevante em cada uma das sociedades.
Os norte-americanos vivem uma espécie de fadiga bélica. Depois da empreitada sem fim no Afeganistão e da custosa guerra no Iraque, a desaprovação a mais essa aventura é clara; metade da população é contra uma intervenção, percentual bem superior aos 30% favoráveis (há outros 20% de indecisos). Em outros tempos, é possível que a causa arrebanhasse mais simpatizantes.
Mais de 110.000 pessoas já morreram nos conflitos internos da Síria. Apesar de ainda não comprovado, é provável que o ditador Assad tenha ordenado um ataque com armas químicas que assassinou mais de 1.000 civis, dos quais quase metade eram crianças ou adolescentes. Não há dúvidas que trata-se da personificação do ‘mal’. Mais um. Por outro lado, também é conhecido que muitos dos seus opositores não são exatamente um exemplo de santidade. Células da ‘Al Qaeda’ apóiam os rebeldes, cujo comportamento é claramente anti-ocidental. Com base nesse cenário pouco amistoso, boa parte da população americana questiona o fato do país ir para um conflito onde os EUA não são bem-vindos por nenhum dos contendedores.
Seria ingenuidade crer em razões humanitárias, motivo apontado por Obama como suficiente para justificar a participação americana. Não que individualmente ele e outros membros do governo sejam indiferentes ao sentimento de ojeriza pelo que o ditador sírio tem feito com seus compatriotas, mas ocorre que no âmbito das nações, razões humanitárias não estão no topo das reais explicações para um conflito, uma vez que outros inúmeros exemplos de carnificina já ocorreram em países da África, Ásia e mesmo nos Balcãs, sem que uma ação de represália tenha partido das grandes potências (e quando ocorreu, geralmente foi bem tardia).
Essa é uma decisão complexa por conta da utilização de armas químicas. Se a comunidade internacional fizer vistas grossas a esse evento (quando for comprovado, além das evidências fotográficas), abre-se um perigosíssimo precedente que pode causar sérios danos à paz na região do Oriente Médio, que já é naturalmente um barril de pólvora esperando uma faísca, sem contar que com isso Assad receberia sinal verde para repetir a brutalidade em outras ocasiões. Ressalte-se que a Síria não é a única detentora de arsenal químico…
Guardadas as devidas proporções, podemos comparar a situação atual com a da Europa às vésperas da Segunda guerra mundial. Naquela época, França e Inglaterra faziam todos os esforços possíveis para a manutenção da paz, uma vez que as horríveis lembranças da Primeira guerra estavam vívidas na mente de suas populações. Por conta disso, Hitler não encontrou resistência ao ocupar a Renânia (território alemão anexado pela França após a Primeira Guerra), a Áustria e a República Tcheca. Poucas vozes defendiam uma ação de contenção sobre as forças nazistas, que se impostas antes de 1939 teriam evitado um mal maior. Apenas quando a Polônia foi invadida, Inglaterra e França declararam guerra contra Alemanha, mas aí a máquina de guerra nazista estava a pleno vapor. O resto da história, o mundo conhece. Assad não invadirá países vizinhos, mas diante das circunstâncias, a omissão da comunidade internacional pode voltar-se contra si em futuro não muito distante.
Milhões se perguntam o que os EUA tem a ver com isso. Tudo a ver. Como potência hegemônica do planeta, seus interesses, sejam eles políticos, econômicos, comerciais, ambientais ou militares, espalham-se por todos os cantos do mundo. É o ônus da liderança. Não há, na história da humanidade, um exemplo de ‘império’ que não se envolvesse em questões externas alheias às suas fronteiras. Quando isso acontecer, é por que ele já desmoronou. Logo, é preciso encarar o dilema do Congresso americano não como uma arbitrariedade imperialista, mas sim como uma atribuição natural de um país com o seu poderio. É óbvio que em caso de apoio à retaliação, os EUA devem buscar a chancela de aliados. Líderes que agem sozinhos se arriscam a desidratar seu poder de infuência.
Fosse o Brasil uma potência da relevância dos EUA, estaríamos nesse momento nos afligindo com as mesmas questões. Mas no caso brasileiro, o problema é mais simples. Entre outros temas quentes do cotidiano tropical, como médicos cubanos, senadores bolivianos e mensaleiros camaradas, a vergonhosa decisão da Câmara na semana passada trouxe à tona o tema do voto secreto para sessões de cassação de parlamentares.
Depois de se tornar motivo de chacota e repúdio por mais uma decisão estúpida, a Câmara aprovou essa semana o fim do voto secreto para quaiquer assuntos em todos as assembléias legislativas do país, desengavetando um projeto de lei que estava parado há alguns anos. Isso coloca o Senado na berlinda, pois agora ele terá que priorizar esse assunto, que não constava no radar para ser votado. Se a deliberação fosse apenas sobre voto secreto para cassação de parlamentares, tramitaria mais rapidamente.
A Câmara cansou de passar vergonha e jogou a batata quente para o Senado. Agora, dependemos da vontade política de Renan Calheiros. Seria mais garantido assegurar que no mínimo as votações de cassação fossem abertas, mas é indiscutível a importância de estender essa prática a todos os assuntos, afinal de contas, o sujeito deve ser capaz de defender publicamente qualquer decisão que tome no Parlamento. O mais surpreendente dessa novela tragicômica foi ler mensagens de deputados ausentes na sessão do presidiário Donadon, vangloriando-se pelo triunfo do voto secreto. Nosso Congresso podia ser exportador de óleo de peroba, contribuiria signficativamente para a balança comercial brasileira.
O Congresso nacional precisa decidir entre a transaparência e a malandragem, e logo. A população brasileira espera que a opção pela primeira seja rápida e indiscutível. Pensando bem, é uma decisão muito mais fácil que a do Congresso americano, que se debruçará sobre o ‘ruim’ e o ‘péssimo’, sem direito de abster-se…
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Victor Loyola
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