‘The crown’: quarta temporada

Texto originalmente publicado no Papodeboteco.net em 18/11/20

Acabo de assistir à quarta temporada da série ‘The Crown’ e me permitirei invadir a praia do meu amigo Vladimir Batista, que ainda não a viu, para comentá-la, por que tal qual nas três anteriores, é digna de aplauso.

Para quem gosta de narrativas que misturam personagens reais e episódios históricos, incrementados por detalhes do funcionamento da realeza britânica, uma instituição representada por uma família, a série é espetacular e nos conduz pelos episódios sob a perspectiva de quem vive dentro do Palácio de Buckingham. Esse provavelmente é seu maior mérito, pois passa a impressão de que somos convidados da família real no compartilhamento de seus dramas, misturados aos sempre interessantes eventos da época.

Não podemos esquecer de que se trata de obra ficcional, então nem tudo que está colocado correspondeu à veracidade dos fatos, é sempre bom dar uma conferida depois em outras fontes, mas podemos deduzir que boa parte da narrativa está direccionalmente correta, sendo obviamente uma interpretação da realidade de acordo com seus autores. Importante lembrar que pelo menos até a terceira temporada, não houve manifesto real de desagravo à série, apenas um comentário aqui e outro acolá a respeito de alguns episódios.

A temporada mais recente cobre os anos 80, a era ‘Thatcher’, e vai da sua nomeação como primeira-ministra até o seu ocaso, 11 anos e meio depois. Também nos conta a história do malfadado casamento entre Charles e Diana, desde os seus primórdios destinado ao fracasso. Um dos aspectos interessantes da série é mostrar como a ‘coroa’ permanece estática tal qual uma rocha enquanto primeiros-ministros vem e vão, e nessa temporada o relacionamento ambíguo e sutilmente conflituoso entre a rainha e a dama de ferro está no centro das atenções.

Rainha e dama de ferro, foto real

O confronto de comportamentos diametralmente opostos, de um lado a moderação absoluta, do tipo que espera que os problemas ‘morram de velho’, e de outro a impulsividade impiedosa, que jamais aguarda o dia seguinte para agir, fornecem a matéria prima principal para vários episódios, onde se destacam os diálogos repletos da mais aguda ironia britânica no elegante embate entre as chefes de estado e de governo. Destaques para os capítulos onde a Guerra das Malvinas e as sanções para o regime do Apartheid na África do Sul são abordados, e outro onde registra-se o vazamento da opinião da rainha sobre as políticas de Thatcher, algo até então inédito em seu reinado.

Menção honrosa para o segundo episódio, onde uma desajeitada Margareth e seu marido vão passar o final de semana no castelo de Belmonte junto à família real, imediatamente após sua nomeação. Simplesmente antológico, pois além de apresentar com senso de humor afiado os contrastes entre o mundo do britânico comum e da realeza, nos coloca diante do momento em que a família aprovava oficialmente a candidata à futura rainha, Diana Spencer, no que veio a ser um casamento repleto de infelicidade e conflitos.

A série trata o tema com bastante neutralidade, não tomando partido das partes antagônicas, no caso o príncipe Charles, desde antes de se casar enamorado e amante de Camila Parker-Bowles e Lady Diana, elevada à princesa ainda adolescente, completamente estranha aos ‘Windsor’. Aliás, ‘The Crown’ é impecável ao retratar a humanidade dos seus integrantes, que embora diferenciados pelo ‘status institucional’, vivenciam os dramas das pessoas comuns, sujeitos às mesmas vulnerabilidades e fraquezas de qualquer plebeu.

A produção, agora adaptada ao cafoníssimo período dos anos 80, permanece impecável. Os capítulos começam com uma chamada aparentemente fora do contexto, mas que se conecta à narrativa ao final de cada episódio. Eu tenho lembranças distantes desse período e nesse ponto a série fica ainda mais divertida, pois nos convida a abrir o baú da memória: guerra das Malvinas, Apartheid, Guerra do Golfo, o tão celebrado casamento do século, foram todos eventos que marcaram época, e são revisitados com os Palácios de Buckingham, Windsor, Highgrove ou Kensignton como cenário de fundo.

Eu vivi em Londres nos anos de 2007 e 2008 e confesso, dei de ombros para a família real. Não me recordo de absolutamente nada de relevante que tenha lido ou se passado no período que a ela se relacionasse, exceto por poucas notícias em tabloides sensacionalistas sobre as baladas dos príncipes. Além disso, o memorial na entrada da loja Harrods em homenagem ao filho do dono (à época) e à princesa Diana, ambas vítimas fatais de um acidente automobilístico e os diversos ‘souvenirs’ que vendem a realeza para todos os cantos do mundo. Ou seja, para um plebeu estrangeiro como eu, é como se a família fosse personagem de um filme, pois sua relevância em meu cotidiano era zero e se resumia a visitas turísticas às ‘Torres de Londres’.

Somente depois de ter vivido lá é que me aprofundei no assunto e entendi a importância e o impacto da monarquia na história britânica e passei e a enxergar a família real como um grupo de servidores públicos que carregam o fardo de sacrificar sua vida pessoal em prol de uma instituição, ao invés de visão comumente difundida de que não passariam de indivíduos fúteis a gozar de privilégios desmedidos e ‘status’ injustificados. Não que sejam perspectivas conflitantes, mas a primeira delas é a que me vem à mente hoje. Pobres reis e rainhas, príncipes e princesas, duques e duquesas. Sou mais o feliz anonimato de quem pode fazer suas escolhas sem que o peso do mundo desabe em suas costas.

Ansioso pela quinta e sextas temporadas, mas agora só em 2022. Recomendo fortemente a quem não viu, que se jogue nos 40 episódios das 4 temporadas, bom para ‘maratonar’.

1 Comment
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1 comentário

  1. Sonia Maria Pedrosa Silva Cury

    21 de dezembro de 2020 em 11:20

    Também adorei essa série, Victor!
    Chegue, logo, 2022!
    Grande abraço.

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