A pandemia da ‘torcida contra’

A pandemia tem se notabilizado em criar ‘torcidas contra’. São  ‘confrarias’ onde os participantes se satisfazem em criticar,, espalhar notícias ruins ou torcer contra determinado personagem ou evento. A coisa ganhou contornos próximos aos que identificamos no fanatismo futebolístico, onde os torcedores normalmente cruzam a fronteira da razão.

São várias as torcidas que surgiram nesses tempos pandêmicos:

Torcida contra a Suécia: nem quando os vikings assombravam o mundo há mil anos, os suecos foram alvo de tantas críticas e torcida contra, só porque desafiaram o modelo padrão de combate à pandemia adotado pela maioria dos países e reverenciado quase sem contestação por todos os veículos da mídia. A Suécia não está entre os 15 piores europeus em óbitos/milhâo de habitantes, mas mesmo assim é frequentemente lembrada por seus detratores, que não perdoam uma postura distinta daquela considerada como a mais correta.

Torcida contra o Bolsonaro: A despeito do presidente brasileiro ser um verdadeiro troglodita em seu comportamento e retórica ao longo da pandemia, ele está longe de ser o responsável por ela, mesmo porque não se pode esquecer que a linha de frente está nos Estados e municípios. Mas  Bolsonaro parece gostar de polêmica e de ser odiado. Sua torcida de detratores é imensa, tão representativa quanto a de seus seguidores fiéis. E a cada declaração infeliz, ela aumenta mais. Há muita gente que se posiona sempre contra o presidente, independentemente dele estar certo ou errado sobre um assunto. O que vale, no caso, é criticar o personagem, não seu conteúdo.

Torcida contra o Dória: o governador de SP, que surgiu no cenário político nacional há 4 anos prometendo mais gestão e menos política, converteu-se em um politiqueiro raiz, tão  oportunista e ardiloso como aqueles a quem criticava. Todos os seus movimentos visam seu benefício eleitoral e ele não poupará esforços na tentativa de ocupar em breve  o Palácio do Planalto. O difícil será convencer uma população  cada vez mais ciente de sua natureza autoritária e de suas jogadas de marketing. Ganhou uma imensa torcida contra nesse ano, cujos associados vâo muito além do grupo de seguidores bolsonaristas.

Torcida contra o tratamento precoce: eis um dos temas mais polêmicos dessa pandemia, com médicos se degladiando em dois grupos o dos que aprovam e acreditam nos ditos tratamentos precoces e o dos céticos que desaprovam. Eu que não sou do ramo é que não me meto nisso. Mas observando a pancadaria, aprendi algumas coisas. Primeiro que é mais difícil coletar uma amostra significativa para validar estatisticamente os resultados do tratamento precoce, seja ele qual for. É mais complicado isolar os casos de outras ações sobre os pacientes e selecioná-los no ‘timing’ correto. A consequência direta dessa dificuldade é que há muita contestação sobre os resultados dos trabalhos de pesquisa. A segunda conclusão é que mesmo sendo efetivo, o tratamento precoce está longe de ser uma bala de prata, pois os casos continuam surgindo e as pessoas morrendo em proporções similares. Agora, o que tem de gente que parte para agressão verbal só porque a outra parte fala em tratamento precoce não é brincadeira. Parece até que é crime a simples menção ao assunto. Eu particularmente desejaria muito que houvesse algo realmente salvador nesse sentido. Mas basta que se levante uma nova possibilidade que a turma do contra vem com paus e pedras para confrontar a tese.

Torcida contra o fim da pandemia: essa é a turma que prega o apocalipse agora para todos. Ao menor sinal de arrefecimento da pandemia já vinham com as explicações de porque tudo iria piorar. Devem ser os que estão mais abalados psicologicamente  após esse ano conturbado, pois são os que tem mais propensão ao enclausuramento continuo (seguramente tem os recursos para tanto) e praguejam contra as pessoas que não compartilham da mesma visão. Esse pessoal pode ter dificuldade em se readaptar à vida sem pandemia no futuro. Nutrem uma espécie de síndrome de Estocolmo com a doença.

Torcida contra o brasileiro: Para esse grupo, brasileiro é tudo de ruim. É o que mais aglomera, o que mais desrespeita a regras, o mais indisciplimado. É a turma do ‘delivery’ que não chega a refletir que o motoqueiro que traz sua comida não pode parar, que muitos prestadores de serviço se locomovem pelo transporte público cheio por não ter outra alternativa. Os detratores do Brasil ignoram os vídeos e fotos que vem de todos os cantos do mundo indicando as mesmas aflições, agonias e comportamentos diante da pandemia. Afinal, os brasileiros são tão humanos quanto os outros terráqueos. Mas a turma do contra prefere criticar acidamente na terceira pessoal do plural, ‘Ah esses brasileiros’, como se não fizezessem parte do grupo.

Torcida contra a vacina: esse é o grupo mais novo, que surgiu com o aparecimento das primeiras vacinas, que segundo seus detratores vieram muito rapidamente. São tantas as teorias por trás da rejeição às vacinas que não cabe me alongar por aqui, mas o fato é que mesmo que a estatística seja amplamente favorável à utilização de imunizantes aprovados pelos órgãos reguladores na contenção da pandemia, esse grupo faz questão de levantar suspeitas contra a sua aplicação. De lá sairão as notícias de todas as reações colaterais possíveis, mesmo que seja 1 caso em 100mil. Eventualmente teremos imagens de algum jacaré falante  em um vídeo que viralizou. Aparentemente há uma torcida para que as vacinas sejam um grande fracasso, apenas pela satisfação de dizer ‘eu avisei’. O mais paradoxal é que ao serem confrontados sobre qual seria a solução para o fim da pandemia que não passe por uma vacina, a torcida do contra não tem um veredicto, permanece uma pergunta sem resposta.

É bem melhor torcer a favor do que contra. Digo isso porque no século passado eu tive grandes momentos torcendo a favor do meu time do coração, que colapsou e tem passado duas décadas de vergonha, nas quais eu na maioria das vezes me peguei torcendo contra seus adversários diretos. Não tenho dúvidas de que a torcida contra é muito menos satisfatória que a torcida a favor.

Se por um acaso você se encaixou em algum desses grupos ou mesmo outros não listados, pense se não é melhor migrar para a torcida a favor, ou pelo menos a neutralidade. Torcer contra cansa. E não me refiro aqui ao ‘polianismo’, essa atitude de buscar sempre uma razão para justificar qualquer ato imbecil de quem você preza muito, a antítese do torcer contra.

É possível exercitar o espírito crítico sem vestir a carapuça do chato(a) de galocha. Não é improvável que muitas vezes na vida a pessoa ‘errada’ faça a coisa certa e a pessoa ‘certa’ faça a coisa errada. Também é bem provável que muitos dos seus dogmas inatos sejam confrontados pela realidade em algum momento. O mundo está perigosamente cheio de pessoas com várias certezas e poucas dúvidas…e muita torcida contra.

2 Comments
0

2 Comentários

  1. Sonia Maria Pedrosa Silva Cury

    23 de dezembro de 2020 em 09:18

    É um povo que está mais interessado na infelicidade do outro do que na própria felicidade. O prazer em torcer contra é maior que tudo.
    Grande abraço.

  2. Roberto Da Silva Dos Santos Santos

    23 de dezembro de 2020 em 20:38

    Parabéns pelo excelente trabalho!!!!!

Deixe uma resposta

Send this to a friend