A imprensa brasileira ignora um dos eventos mais importantes do continente nos últimos tempos, o plebiscito do dia 2/10 que pode referendar o acordo de paz entre o governo colombiano e as FARC. Nessa data, 33 milhões de eleitores terão o direito de escolher entre o ‘sim’, que endossa o acordo, descrito em um tratado de 279 páginas que poucos leram, e o ‘não’, que o rejeita, e colocaria os esforços pacifistas do presidente Juan Manuel Santos em um ‘congelador’.
Após três dias em Bogotá, onde conversei bastante com muitos colombianos sobre o assunto, sinto-me à vontade para compartilhar as minhas impressões e o que aprendi. O causo é espinhoso. É uma pena que nossa imprensa não se aprofunde nele.
É importante contextualizar um pouco da história: as FARC, Força Revilucionárias do Exército Colombiano, surgiram em 1964 no interior da Colômbia, como uma organização comunista, levantando as bandeiras da reforma agrária, igualdade social, e outros temas comuns à doutrina esquerdista. Com o tempo, cresceu e se afastou dos princípios de sua fundação, convertendo-se em um grupo terrorista, que se impôs sobre as comunidades campesinas de boa parte do interior, espalhando a violência e o terror. Da selva, seus líderes comandavam ataques a órgãos públicos, assassinatos e sequestros de políticos, funcionários públicos e civis, e passaram a se beneficiar do tráfico de drogas, cada vez mais poderoso na Colômbia, transformando-a em um dos países mais violentos do mundo em meados dos anos 90. As estatísticas apontam para mais de 250 mil assassinatos cometidos pelas FARC ao longo de sua existência e 7 milhões de pessoas obrigadas a deixar seu lugar de origem para fugir da tirania. Crianças e adolescentes eram afastados de suas famílias e obrigados a se alistar no ‘ exército revolucionário’. Um estado paralelo foi criado no interior colombiano, controlado pelos guerrilheiros traficantes.
Em meados dos anos 90, a guerrilha desfrutou do auge de seu poder. Chegou a deixar o então presidente Andres Pestrana plantado sozinho em uma sala de reunião para a qual não compareceram, após meses de negociação e preparação. Era como se dissessem ao governo: ‘Não precisamos de paz, nem de vocês’. Posteriormente, em 2002, Álvaro Uribe ascendeu ao poder e com o apoio dos EUA preparou o ‘Plano Colômbia’, uma ofensiva bilionária com o objetivo de destruir as FARC, executado pelo então ministro da defesa Juan Manuel Santos. Os EUA treinaram e equiparam o exército, além de reforçar a inteligência. Foi um período de guerra total aos terroristas. Nessa época, também mostravam forças as organizações paramilitares, que faziam o contraponto às FARC, nas sombras. O esforço de Uribe surtiu efeito. Os criminosos passaram a ser implacavelmente caçados, bombardeados, presos. Viviam como nômades na selva, mudando a todo instante de acampamento. Uribe enfraqueceu muito as FARC, mas não as destruiu.
Tudo indicava que seu sucessor e então ministro da defesa, Juan Manuel Santos, continuaria o esforço de guerra até eliminar as FARC em definitivo. Mas houve uma mudança de rota. Ao invés da destruição, desenhou-se um acordo de paz, sob a oposição ferrenha de Uribe, hoje senador e também com muitos de seus ex-assessores alvejados por escândalos de corrupção e envolvimento com os paramilitares. Debilitadas, as FARC dessa vez não impuseram resistência, nem ignoraram o chamado para conversar. Intermediado por Raul Castro, o acordo preliminar histórico foi firmado há dois meses em Havana entre Juan Santos e Ivan Marquez, líder guerrilheiro das antigas, e será referendado ou rechaçado pela população no início do próximo mês.
A Colômbia está dividida, apesar do favoritismo do ‘sim’. Os grupos antagonistas estão em pé de guerra nas redes sociais, amigos rompem amizades de longa data, familiares brigam entre si, falsas reportagens e factóides são espalhados pela nuvem, algo muito próximo do que vivenciamos no Brasil no período eleitoral de 2014. Mas a questão aqui é mais profunda que as divergências políticas tupiniquins: até que ponto vale a pena perdoar e esquecer para seguir em frente?
Para o ‘sim’, conta principalmente a vontade dos colombianos em olhar para o futuro, e cicatrizar as feridas do passado. Argumenta-se nesse caso que não há condições de colocar fim à guerra que não seja através de um acordo de paz, pois as FARC, mesmo debilitadas, ainda estariam em condições de se perpetuar, como toda organização terrorista moderna. Mesmo tendo abandonado a matança há algum tempo, elas poderiam facilmente retomar o ciclo de terror. Sendo assim, melhor fazer a paz, aprender a conviver com a sofrida história anterior e seguir em frente. Além disso, do ponto de vista econômico, um país oficialmente pacificado é mais seguro e estável e proporciona melhores perspectivas.
Para o ‘não’, conta principalmente a vontade dos colombianos de fazer justiça. Os argumentos são vários. Primeiramente, como conceber que terroristas ganhem dez vagas no Senado Federal? Daqui a duas eleições eles teriam que assegurá-las no voto, mas a representatividade política inicial está garantida. Ao assumir a culpa pelos seus crimes, os guerrilheiros cumpririam penas de prisão domiciliar ou semi-aberto com prestação de serviços comunitários, em qualquer situação muitíssimo mais brandas do que se fossem julgados em condições normais. Também está incluído no acordo uma espécie de ‘bolsa ex-terrorista’, uma ajuda de custo do estado por tempo determinado (2 anos) para colaborar com a sua inserção na sociedade. Ninguém sabe ao certo dizer qual a amplitude do ‘perdão’, e essa é uma das críticas mais ferrenhas dos partidários do ‘não’: o acordo não está claro, é longo demais, dá margem à interpretações subjetivas e sequer cita nominalmente as FARC, deixando a impressão de que será conduzido politicamente. Há ainda o receio, improvável na minha opinião, de uma futura ‘venezuelização’ do país, com representantes das FARC ocupando posições políticas perigosamente relevantes.
Um acordo de paz com as FARC não eliminaria por completo o terrorismo. É improvável que todos os guerrilheiros (estima-se que hoje sejam oito mil) abandonem as armas e já existem grupos menores agindo no país, como o ELN (Exército de Libertação Nacional), além dos paramilitares. Essa situação pode tanto servir aos argumentos do ‘sim’ quanto do ‘não’. Se por um lado, a ‘rendição’ da legendária organização criminosa pode eliminar o maior dos problemas no combate à violência, ajudando a concentrar esforços contra outros grupos menores e ainda não tão estruturados, por outro, a não eliminação completa do terror não justificaria os benefícios concedidos às FARC.
As cartas estão sobre a mesa. O governo de Juan Manuel Santos tem jogado pesado na campanha pelo ‘sim’, apostando sua própria sobrevivência política no êxito. Guardadas as devidas proporções, o plebiscito é uma espécie de ‘Brexit’ colombiano. No interior, o ‘sim’ deve ter ampla maioria. As populações campesinas, muito mais do que as urbanas, sofreram na pele as consequências de um estado contínuo de guerra; resta saber se comparecerão em peso às urnas. Nos grandes centros urbanos, a disputa está mais acirrada. Os ‘uribistas’ seguem com grande representatividade. O índice de homicídios no país caiu pela metade após o enfraquecimento das FARC e as cidades tornaram-se muito mais seguras, esse é um mérito atribuído principalmente ao ex-presidente Uribe, que abriu os caminhos que permitiram que a Colômbia pudesse debater hoje as duas possibilidades.
Ambos os lados tem argumentos consistentes, e não existe nesse caso a decisão certa ou errada. São duas visões de futuro, uma onde você opta por seguir em frente, apostando na paz e na capacidade de perdão da sociedade, em detrimento do seu senso de justiça, e outra em que você opta pela justiça, embasado na tolerância zero contra crimes passados, em detrimento da paz. Desafortunadamente para os colombianos, não há solução que concilie perfeitamente paz e justiça.
Fosse eu chamado a votar, tenderia a optar pelo ‘sim’.
Interessante notar que a presença de uma forte organização criminosa atuando à revelia do estado não é exclusividade da Colômbia, e está presente em todos os países onde políticos vampirizam-no em benefício próprio, proporcionando lacunas de autoridade e credibilidade que são gradualmente preenchidas pela banda do crime clandestino. Essa também é a realidade brasileira. Com mais de 57.000 assassinatos por ano, boa parte deles ocorridos sob a influência do tráfico de drogas, normalmente na periferia das grandes cidades, vivemos uma guerra civil silenciosa. Não temos as FARC, mas o PCC (dentre outros). Também são influentes, ‘recrutam’ jovens nas comunidades carentes, atuam onde o estado não chega. Como as FARC, matam e sequestram. Diferentemente delas, não nasceram sob a influência de uma ideologia; por outro lado, também ocuparam o vácuo deixado por um estado corrupto, negligente e incompetente. Ao contrário dos criminosos colombianos, não sofreram ofensiva de nenhum governo, seguem agindo sem encontrar maiores resistências. Não os afrontaram como fizeram as FARC nos anos 80 e 90, e convivem de maneira mais protocolar; ‘eu aqui, você ali’. Como seguem fortes e influentes, não experimentamos no Brasil nenhuma redução no número de homicídios, que só faz aumentar. Já na Colômbia, ele foi amplamente reduzido, graças à atenuação da guerra.
Você que até agora imaginava que esse texto era sobre as FARC, deve estar percebendo onde quero chegar. Sofremos do mesmos males que a Colômbia, manifestados de forma diferente. Nossos vizinhos estão na iminência de selar um processo de paz que provavelmente proporcionará um futuro menos violento às próximas gerações. Nesse aspecto, estamos muito atrás. Ou alguém aí já viu as quase seis dezenas de milhares de assassinatos por ano entrarem na pauta do Congresso, do governo federal ou dos estaduais? A nossa guerra civil é ‘bacana’ por que não incomoda e nem requer acordos complicados de paz. Banalizada, minou a nossa capacidade de indignação, nos acostumamos a ela. Resta-nos rezar para que não façamos parte de suas estatísticas fúnebres. Confesso que preferia estar discutindo calorosamente um assunto como o referendo colombiano nas redes sociais do que ficar participando dos debates inúteis sobre o tal golpe que nunca houve.
Boa sorte, Colômbia.
Acorda, Brasil.
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Victor Loyola
Os textos refletem minha opinião pessoal sobre qualquer assunto, não há nenhum tipo de vinculo com corporações, grupos, ou comunidades. Comentários são extremamente bem-vindos. Me esforçarei ao máximo para fazê-lo um hobby permanente. No segundo tempo de minha vida, está definido que continuarei escrevendo. Se eu parar, de repente é por que eu surtei ou houve algum apagão de criatividade. Essa versão do blog está turbinada – é para ser mais agradável e acessível ao leitor. Há até um espaço para enquetes, uma maneira bem-humorada para encarar o mundo. Boa leitura!!!!!
3 Comentários
Marlene Carnevali
4 de outubro de 2016 em 10:15Excelente análise. Vamos começar pelas FARC: Fiquei satisfeita com o resultado do plebiscito na Colômbia. Na minha opinião, não existe ex-assassino, matou uma vez será assassino sempre. Um acordo de paz com as FARC significaria dar poder a bandidos e nós sabemos o resultado disso pois vivemos isso nos últimos anos. Como aplicar pena de prisão domiciliar e ao mesmo tempo oferecerto dez vagas no Senado? Me parece um tanto incoerente. Analisando os riscos do que isso representa seria o mesmo que dar acesso a amplo aos nossos traficantes ou então ao MST. Será que alguém acredita que esses dez membros iriam agir com ética, que talvez nem saibam o que seja, e tomar decisões cívicas pela nação? Desculpe mas não é assim que funciona com ser humano, o que prevalece é a índole de cada um, principalmente os princípios que cada um defende há anos e isso não muda do dia para a noite, ao contrário, potencializa os ideais terroristas. É a impressão que me dá quando vejo um policial agindo de forma truculento como na época do governo militar dando a impressão de qu um marginal prestou concurso, para ter acesso a “certas facilidades”. É o bandido com poder de policia.
Agora vamos falar de Brasil que tem suas próprias FARC disfarçadas em MST. Alguém consegue imaginar que Stédile no senado agiria com ética? Alguém confie imaginar um Fernando ho Beiramar agindo com ética?
Por isso eu votaria contra esse pseudo acordo de paz que, na minha opinião, seria armar o inimigo.
Que continue o governo Colombiano enfraquecendo como já fez. Prendendo cada membro e condenando pelos seus crimes e não premiando o terror.
Marlene Carnevali
4 de outubro de 2016 em 10:21Excelente análise. Vamos começar pelas FARC: Fiquei satisfeita com o resultado do plebiscito na Colômbia. Na minha opinião, não existe ex-assassino, matou uma vez será assassino sempre. Um acordo de paz com as FARC significaria dar poder a bandidos e nós sabemos o resultado disso pois vivemos isso nos últimos anos. Como aplicar pena de prisão domiciliar e ao mesmo tempo oferecer dez vagas no Senado? Me parece um tanto incoerente. Analisando os riscos do que isso representa seria o mesmo que dar acesso amplo aos nossos traficantes ou então ao MST. Será que alguém acredita que esses dez membros iriam agir com ética, que talvez nem saibam o que seja, e tomar decisões cívicas pela nação? Desculpe mas não é assim que funciona com ser humano, o que prevalece é a índole de cada um, principalmente os princípios que cada um defende há anos e isso não muda do dia para a noite, ao contrário, potencializa os ideais terroristas. É a mesma impressão que tenho quando vejo um policial agindo de forma truculenta como na época do governo militar dando a impressão de que um marginal prestou concurso para ter acesso a “certas facilidades”. É o bandido com poder de policia.
Agora vamos falar de Brasil que tem suas próprias FARC disfarçadas em MST. Alguém consegue imaginar que Stédile no senado agiria com ética? Alguém consegue imaginar um Fernandinho Beiramar agindo com ética?
Por isso eu votaria contra esse pseudo acordo de paz que, na minha opinião, seria armar o inimigo.
Que continue o governo Colombiano enfraquecendo como já fez. Prendendo cada membro e condenando pelos seus crimes e não premiando o terror.
Victor
7 de outubro de 2016 em 11:02Obrigado pelo comentário, Marlene.
Eu tenderia a ir pela paz, pela simples razão de que uma hora a guerra tem que acabar ou ela está fadada a ser eterna. Se bem que é possível que com a rejeicão, os colombianos ainda consigam um acordo com menos regalis aos terroristas. Mas não e um assunto fácil, entendo perfeitamente a a sua opinião.