O caso COAF e o clã

Acuados pelas investigações do COAF, que permanecem no ar sem esclarecimentos, bolsonaristas apelam para o tradicional dedo na imprensa persecutória, a comparação com a roubalheira épica dos seus antecessores e no limite, admitem que trata-se de um pequeno delito, daqueles enraizados como praga na cultura nacional, seja um pedágio cobrado de assessores parlamentares ou o emprego de funcionários fantasmas em seus gabinetes. É a versão mais magra do ‘todo mundo rouba’, tão difundida pelo petismo.

A ausência de explicações amplifica o coro dos acusadores. Na primeira denúncia, a movimentação atípica de Fabrício Queiroz atinge em cheio Flavio Bolsonaro, que parece ter feito uso da cobrança de pedágio dos seus assessores. O tal empréstimo concedido pelo pai a Queiroz, que supostamente o quitou com um depósito na conta da futura primeira dama, seria uma história plausível, mas o emprego de uma de suas  filha, Natália, no gabinete de Jair Bolsonaro em Brasília, enquanto vivia no Rio exercendo suas atividades de personal trainer, amplia os vasos comunicantes entre as práticas nos gabinetes de Flávio e Jair.

É verdade que houve um vazamento seletivo e Flavio Bolsonaro foi o alvo principal, já que dos 20 deputados estaduais investigados, o filho 02 é somente o #16 na lista dos gabinetes que mais movimentaram dinheiro no período analisado. O campeão, sem surpresas, é um deputado petista, André Cecíliano, com R$ 49 milhões de movimentação. Nomes conhecidos, como o ambientalista Carlos Linc e o emedebista Átila Nunes estão na lista, à frente de Flávio.

Esse evento encoraja o discurso do ‘todo mundo faz, deixa isso para lá’. Seria o caso então de supor que Bolsonaro atacará a corrupção no atacado, mas a do varejo é permitida? Pequenas ilicitudes seriam toleradas. É isso? Afinal, empregar uma funcionária que não trabalha e cujo salário é transferido quase que integralmente ao assessor chefe do filho, pai dela, não é nada demais, certo?

Na prática, os assessores parlamentares têm a liberdade de fazer o que quiser com o seu salário. Se em um rompante de altruísmo eles decidirem doar parte dele ao chefe, eles podem, mas sabemos o que isso significa.

Jair deu indícios de qual será o tom de suas justificativas em relação à funcionária fantasma lotada em seu gabinete. Eram 15 os assessores e quem cuidava da burocracia era o chefe, não ele. Deve terceirizar a culpa. Ou seja, má gestão pública praticada sob sua vista, e ele não sabia de nada. Esse discurso não lhe soa familiar? Quanto à terceirização da culpa, Dona Marisa, que Deus a tenha, sabe bem o que é isso…

É inegável também que o foco da imprensa em Flávio parece desproporcional em relação à sua posição no ranking, afinal, há 15 deputados com maior movimentação em seus gabinetes, mas nenhum deles é filho do presidente eleito. E uma boa imprensa, desde que o mundo é mundo, denuncia. Não fosse assim, os escândalos de corrupção que aniquilaram o PT jamais teriam se encorpado. A qualidade do conteúdo das notícias muitas vezes deixa a desejar, como exemplo disso o fato da real magnitude da tal movimentação ser de R$ 600 mil, metade do valor reportado, que representa entradas e saídas, mas isso o leitor só descobre com muita atenção.

Mas nada disso ofusca a necessidade de que a situação seja investigada e esclarecida. Está na descrição de cargo da presidência sua conversão de pedra à vidraça. Quem deseja o cargo, necessariamente deve aguentar o tranco. Do contrário, que peça para sair…

Não deixa de ser engraçado assistir a petistas se regozijando com a constatação que seu algoz se comprazia nas práticas antiéticas comuns entre as ‘autoridades’, como se o ‘petismo raiz’ se preocupasse realmente com isso, uma vez que passou mais de uma década fazendo vistas grossas à roubalheira monumental e negando sua existência.

Não menos hilário é assistir aos bolsonaristas de fé se valendo dos mesmos argumentos utilizados pelo petismo ao longo de seu tenebroso reinado.

O trombadinha que faz sua ‘carreira’ com pequenos delitos, pode mudar de patamar ao se deparar com uma arma. O ditado que diz que a ocasião faz o ladrão se aplica em muitas situações onde um reles batedor de carteira se transforma em assaltante de banco. Ou seria melhor o ‘ladrão faz a ocasião’?

O patrimonialismo enraizado na cultura brasileira é o cerne dessa confusão. Políticos não enxergam problema em se apoderar do erário, uma vez que isso não se caracterize crime. Afinal, há uma verba de gabinete, por que não utilizá-la, mesmo que seja para benefício próprio? Uma lógica parecida se aplica à adesão aos auxílios moradia, paletó, etc que membros do Judiciário e do Ministério público abraçam com tanta veemência. São as concessões de um estado perdulário, que beneficia incessantemente seus representantes de elite, convertendo-se em rentistas do patrimônio público. Não é à toa que nosso Judiciário e Legislativos estão entre os mais caros do planeta.

E sob o mantra do patrimonialismo vive a maioria dos nossos políticos, que encaram naturalmente as práticas de ‘achaque’, hoje na berlinda com as denúncias sobre o clã. Nesse ponto, os Bolsonaros não se diferenciam em nada da multidão, ao contrário do que pregavam em campanha. Se por um lado, pode-se dizer que eles não assaltaram a Petrobrás, vale o argumento de que também não tiveram essa oportunidade. Tudo indica que o clã também se fartou no varejinho dos pequenos delitos, a menos que respostas, até o momento inexistentes, expliquem essa barafunda toda.

Não estou certo de que essa história minará a popularidade inicial de Bolsonaro. O povão, como se sabe, não liga muito para isso. É o patrimonialismo, meu caro. Do contrário, Lula sequer seria reeleito, já manchado à época pela sujeira do ‘Mensalão’. É possível que o governo que nem iniciou siga o seu ritmo, alheio aos pequenos escândalos. Mas o véu da lisura, sob o qual Bolsonaro cultivava a imagem de super ético, se foi com uma brisa. Imagine o que não faria uma ventania.

Eu votei em Bolsonaro no segundo turno. E repetiria o ato, sem pestanejar, por que na minha opinião a outra opção seria o apocalipse. Mas isso não me coloca na posição de aprovar tudo que ele faz e diz, muito menos de fazer vistas grossas ao que está errado, sob a justificativa de não desestabilizar o governo.

Em uma situação como essa, encurralado pela verdade, o que os Bolsonaro deveriam fazer? Devolver o dinheiro repassado pelos assessores e ganho pela funcionária fantasma seria um bom exemplo. Mas daí teriam que admitir o malfeito. Seria algo inédito, surreal. Ou então provar que tudo isso não passa de um mal entendido, algo que a essa altura parece impossível.

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