Um belo dia, ao voltar do trabalho, quando ainda vivia em Londres, fui surpreendido por uma grande placa amarela pregada na esquina da quadra onde morava, com os seguintes dizeres: ‘ Caro morador, aqui nesse local, uma mulher foi assaltada por três homens de bicicleta, que a derrubaram e roubaram sua bolsa. Se você souber de algo relativo a esse evento, por favor comunique a polícia. Estamos investigando o caso e procurando os delinquentes.’ Para um brasileiro como eu, tratava-se de uma situação surreal. Imediatamente pensei em minha terra natal: ‘ caso tivéssemos a mesma diligência policial, faltaria calçada para tanta placa!’.
A sensação seguinte é inédita para quem vive no Brasil e talvez passe desapercebida aos que cresceram rodeados de civilização: me senti reconfortado ao constatar que os gordos impostos que eu deixava para o governo britânico eram transferidos em cuidado com a população. A polícia não evitava bandidos de agirem, pois não se controla a natureza humana, muitas vezes perversa, mas estava em todos os cantos, intimidando-os. Não tenho dúvidas que os criminosos pensariam duas, três vezes, antes de cometerem um delito qualquer, sob a pressão permanente de uma autoridade vigilante. Para todos. Lá estavam os meus impostos.
Não era uma sensação efêmera. Após passar no médico generalista do bairro onde morava ( todos tem um), no que foi uma prévia de consulta pediátrica ( você só pode ir a um especialista caso o generalista faça a indicação), me dirigi à farmácia do outro lado da rua, e qual não foi minha surpresa ao ser informado que toda batelada de remédios prescrita era oferecida gratuitamente. Para todos. Lá estavam os meus impostos.
Na época em que morei por lá, no biênio 2007-08, toda família com crianças de idade inferior a 8 anos era elegível a um auxílio de £80 por mês, equivalente a R$ 320 da época, mais que o celebrado bolsa-família. Para todos. Lá estavam os meus impostos.
No Reino Unido, qualquer um pode comparecer às sessões na Câmara dos Comuns, onde o primeiro ministro vai prestar contas semanalmente, ajoelhar no milho. Com sorte, você até consegue interpelá-lo. Os ‘ deputados’ são eleitos a partir de um sistema distrital puro. Via de regra, comportam-se como servidores públicos. Lá estavam meus impostos.
Já no Brasil, acompanhei de longe um escândalo que atingiu essa mesma Câmara, quando alguns ‘ deputados’ foram flagrados utilizando indevidamente verbas do governo para uso próprio ( como jardinagem). Corruptos. A nós, brasileiros, os valores surpreendiam pela frugalidade: pouco mais de £1.000, às vezes nem isso. Envergonhados, todos envolvidos renunciaram. Na época, meus impostos haviam mudado de endereço.
Poderia preencher várias páginas com exemplos similares, onde o contribuinte percebe claramente que seu dinheiro não escoa pelo ralo da ineficiência. Não que lá o mundo seja perfeito e tudo funcione, muito menos que as pessoas vivam sempre felizes e satisfeitas. Aliás, o nível de exigência é bem mais alto do que pelas bandas de cá. Mas há uma diferença gritante na seriedade com a qual as instituições tratam a ‘coisa’ pública…
O espetáculo circense proporcionado pelo STF no que diz respeito ao mensalão, por exemplo, escancara nossa natureza burocrática. Mais de oito anos se passaram, o assunto ainda não foi encerrado, a Corte máxima do país já reformou uma parte da sentença que a própria havia promulgado e ainda cabe recurso, mesmo após o caso transitado e julgado. É possível que condenados se tornem inocentes! A crítica não é circunscrita ao universo petista. O mensalão tucano sequer foi a julgamento. Denúncias sobre irregularidades em gestão de contratos pipocam a toda hora, em todos os lugares. A máfia dos fiscais da prefeitura paulistana movimentou centenas de milhões de reais e os envolvidos estão soltos por aí. Quem circula ao redor da esfera pública, não se surpreende com histórias de roubalheira, elas fazem parte do cotidiano. Polpudas propinas no Executivo, Legislativo e Judiciário simplesmente tornam explícita o forte componente patrimonialista de nossa cultura, que teima em achar normal que os interesses públicos subsidiem os privados. É o nosso dinheiro, sendo usado para o enriquecimento ilícito de alguns gatunos. A placa amarela londrina me persegue…
Nossa infra-estrutura precária, educacão e saúde rudimentares, a completa ausência de segurança pública, o arcabouço de leis quase incompreensível que permite uma infinidade de brechas, cujo efeito colateral é a procrastinação aos que tem recursos para obtê-la, nossa falta de ambição, o comodismo ao aceitar melhorias tímidas como se fossem grandes realizações, são motivos de grande inconformismo, principalmente para aqueles que já vivenciaram uma experiência diferente em um ambiente mais civilizado. A placa amarela londrina me persegue…
Confesso que essa semana, ao ouvir as firulas oratórias do ministro Barroso justificando seu voto contra a condenação de quadrilha no mensalão, sua imagem me fez companhia permanente. Não me surpreenderei se o ‘fala-mansa’ enviar o caso mineiro para a primeira instância, situação que atrasaria decisão final por muito mais tempo. Eu contribuo com o salário desse senhor, que já foi defensor de um assassino, na própria Corte da qual hoje é integrante. A placa amarela surge como uma luz piscando em meu pensamento. Nossos impostos ajudam a forrar os bolsos de criminosos e subsidiam a impunidade.
Também financiaram uma dezena de estádios com padrão FIFA, superfaturados em relação aos orçamentos originais. O Brasil foi escolhido como sede da Copa há 7 longos anos, e nem com tanta antecedência conseguimos nos preparar. Nossa cultura do improviso, tão útil em situações inesperadas de crise, é um tremendo obstáculo à realizações de longo prazo. Onde estão as obras de mobilidade urbana? Sobreviveremos com ‘puxadinhos’ em aeroportos e feriados em dias de jogos. Nosso jeitinho. Fecho os olhos e vejo a placa amarela londrina…
Estamos no carnaval. Felizes. O ano logo começa no dia 5, e em breve experimentaremos uma pausa de um mês para a Copa do Mundo. A população será convocada a torcer pela seleção, como se isso fosse um ato patriótico. Seria uma demonstração de patriotismo se os arrecadadores dos nossos impostos lhes destinassem boa utilização. Fecho os olhos e vejo a placa amarela londrina…
Essa placa que me persegue não existe no Brasil. Tenho que conviver com uma assombração. Mas temos festas, somos felizes. Felizes e desamparados. Será que um dia verei uma placa dessa por aqui? Acho que não. Para fazê-lo, inevitavelmente tenho que utilizar o aeroporto…
Ps* A tela acima não tem relação direta com o texto, a não ser pelo fato de ser tão bela que transmite algo de felicidade, com um banco perdido no meio de tantas cores, passando uma sensação de desamparo…
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Victor Loyola
Os textos refletem minha opinião pessoal sobre qualquer assunto, não há nenhum tipo de vinculo com corporações, grupos, ou comunidades. Comentários são extremamente bem-vindos. Me esforçarei ao máximo para fazê-lo um hobby permanente. No segundo tempo de minha vida, está definido que continuarei escrevendo. Se eu parar, de repente é por que eu surtei ou houve algum apagão de criatividade. Essa versão do blog está turbinada – é para ser mais agradável e acessível ao leitor. Há até um espaço para enquetes, uma maneira bem-humorada para encarar o mundo. Boa leitura!!!!!
3 Comentários
Alberto Arguelhes
2 de março de 2014 em 19:15Parabéns pela pertinente e madura leitura da nossa realidade brasileira. Acho que daqui para frente a placa amarela londrina também estará me perseguindo. Vou compartilhar.
Victor
2 de março de 2014 em 22:54Obrigado, Alberto Arguelhes e Luciana Mandina.
Fiquem à vontade para compartilhar.
Luciana
2 de março de 2014 em 22:07Nossa, pensei a mesma coisa! a partir de agora a placa amarela tb me persegue.