Emoções

Cresci ouvindo Roberto Carlos. Nos anos setenta, as viagens noturnas que fazíamos entre o interior e Curitiba tocavam as melodias do Rei, nas ‘K-7’ do toca-fitas do VW TL alaranjado e posteriormente do Maverick marrom, hoje peças de museu. Na década seguinte, a chegada do novo disco era um evento anual, sempre em Dezembro. Minha mãe invariavelmente comprava todos e eles eram repetidos à exaustão, nos primeiros anos em uma vitrola alaranjada e posteriormente em um trombolho metálico que continha um toca-disco, rádio e toca-fitas; em sua época, moderníssimo, pois a agulha se alinhava automaticamente ao vinil. E assim, nas minhas duas primeiras décadas de vida fui intensamente exposto à todas as suas músicas, e acabei decorando muitas delas.

Em 1989, então com 16 anos, recordo-me de que fui a um show do Rei no Maracanãzinho, com a família toda. Naquela época, havia criado uma certa antipatia musical por ele, uma espécie de cansaço auditivo causado por repetição insana. Não cheguei a considerá-lo um programa de índio, mas passou perto. A partir dos anos 90, já longe de casa, essa exposição diminuiu e restringia-se aos especiais de final de ano na Rede Globo, coincidências na sincronia das rádios e nas ocasiões em que visitava meus pais. No século XXI, passei a ouví-lo ainda menos, também em razão de ter passado metade do tempo fora do país e naturalmente mais conectado a artistas internacionais. Após regressar, no início de 2009, RC já não estava na crista da onda com lançamentos anuais. Aliás, o CD já experimentava seu ocaso, com o advento da música digital. Os programas da véspera de Natal eram as únicas ocasiões em que eu resgatava esse passado musical. Eu julgava, equivocadamente, que a minha memória tinha cada vez menos espaço para as músicas do Rei.

Eis que em Maio desse ano, em um evento corporativo, tive a oportunidade de assistir a um show, no Credicard Hall, mais de 20 anos depois do quase programa de índio do Maracanãzinho. Me surpreendi. Percebi que estava familiarizado com todo o repertório. Sabia a letra de quase todas as músicas. Em muitas delas, fui acometido por um sentimento nostálgico, que me levava de volta à infância. O altíssimo profissionalismo da banda e a simpatia e controle de palco do RC não eram necessariamente uma novidade, mas presenciá-los ao vivo é sempre uma experiência superior ao vídeo. Como se tratava de um evento corporativo, com audiência menor e mais contida, saí de lá com a intenção de retornar no futuro em um show comum, no meio da ‘massa’.

Tive essa oportunidade no sábado que passou, no Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo. Uma leve garoa refrescava a cidade após uma tarde quente e nos arredores do ginásio o trânsito indicava que ali haveria algum evento de relevância. Chegamos com 15 minutos de antecedência e nos acomodamos na quinta fileira de cadeiras de plástico, nada confortáveis, organizadas na pista em frente ao palco. Dali, ficaríamos a uns oito metros do protagonista e sua banda. Aos poucos, as arquibancadas lotavam. Dois telões dispostos nos lados superiores esquerdo e direito do palco permitiriam uma visão mais detalhada do show aos que estavam mais distantes. Felizmente a temperaturatura caiu, pois a ausência de ar condicionado seria um incômodo. Ambulantes vendiam cerveja e refrigerante por ‘módicos’ R$ 10. O copo de água custava R$ 5. Um crepe salgado, outros R$ 10. Extremamente caro. Absurdamente caro, melhor dizendo. Com o atraso, você se deixa levar pelos preços alvitantes e acaba consumindo. Imagino que a organização de shows desse tipo no Brasil lucra bastante com salgados, refrigerantes, água e cerveja. Aqueles R$ 5 que eu gastei em um copo dágua, comprariam pelo menos quatro deles no supermercado. Isso sem falar no estacionamento de R$ 50…!

Dediquei-me também a observar o comportamento da platéia, constituída em sua maior parte por mulheres, provavelmente na proporção de 70 contra 30% de homens. E dentre elas, predominava a faixa etária superior aos 60 anos. Não havia muitos jovens na casa dos 30 e arredores, e menos ainda na faixa dos vinte e poucos. Momentos antes de começar o show, noto um burburinho no ginásio, seguido de muitos aplausos. Olho para cá e para lá, e avisto a figura do ex-presidente FHC, tomando um lugar na primeira fileira, acompanhado por outras pessoas e um séquito de seguranças (direito dos ex-chefes de Estado). Luis Ignácio se morderia de raiva com a reação positiva e sincera do público para com seu antecessor. Também na primeira fileira, quatro cadeiras à minha frente, sentava-se com a mulher o jornalista Marcelo Tas, do CQC.

Finalmente, com 45 minutos de atraso, subiu ao palco a banda composta por 17 músicos, para o delírio do público. Após uma primeira instrumental, aparece RC abrindo o show com o clássico ‘Emoções’. Na sequência, outro, ‘É preciso saber viver’. O ginásio cantou junto. Ao redor, era perceptível que saber as músicas ao pé da letra não era privilégio meu. Algumas mulheres exageravam na emoção, demonstrando explicitamente os sentimentos à flor da pele. Quase teatral. Outras, balbuciavam as letras com movimentos labiais sutis. Singelo. As mais idosas, e nessa categoria incluo as senhoras com mais de 80 anos, acompanhavam as canções com um sorriso e movimentos da cabeça, para lá e para cá. Como se estivessem vendo um filme de um tempo vivido há muito. Felizes recordações. Discretas. A minoria masculina também demonstrava um vínculo com tudo aquilo. O semblante compenetrado escondia as mais diversas emoções, resgatadas de momentos do passado que seguramente vinham à tona na interpretação do Rei. Era o meu caso. A segunda música, por exemplo, foi a que eu escolhi para finalizar o vídeo em homenagem ao meu pai (compartilhado no ‘post 39’). Impossível não me emocionar. Quem me visse naquela situação, com os olhos marejados, poderia chegar a conclusões equivocadas. Nada disso. Entrara em uma máquina do tempo e mergulhava em um oceano de emoções. O mesmo acontecia com muita gente na platéia, bastava observar os semblantes dos mais diversos tipos à medida que as músicas passavam, todos eles denotavam que seus donos estavam a viajar pelo tempo.

Resolvi adotar uma tática de defesa contra a ‘pagação de mico’, pois haveria de ouvir a música ‘O portão’, precedida pela história do cachorrinho Axaxá, que também foi contada durante o show corporativo. Essa canção realmente me remete a meados da década de 70, talvez tenha sido a mais marcante desse período, e se estivesse muito concentrado, poderia chorar ao invés de lacrimejar. Então o jeito foi desconcentrar. Passei a ouvir as músicas, tirar fotos e observar as reações nos detalhes ao longo do show, tudo ao mesmo tempo. Nada de concentração. O auge da noite foi quando ele cantou a já insuportável ‘Esse cara sou eu’. Não seria tão ruim se não tocasse tanto…a mulherada foi à loucura.

Estranhamente, quando o show se encaminhava para a parte final, os dois corredores ao lado das três fileiras de cadeiras são ocupados por seguranças, elegantemente vestidos com terno preto, camisa branca e gravata escura, cada qual sentado em um cadeira, de costas para o palco, separados por uns dois metros de distância entre um e outro. Achei aquilo sinistro. Afinal, para que seguranças? Estávamos em um show do Roberto Carlos e não em um baile funk! Ao total, eram doze, seis em cada corredor. Então, veio a explicação. Após RC finalizar uma música, dando a entender que o show se encaminhava para o fim, o ex-presidente FHC e suas companhias saem com passos apressados, protegidos por vários seguranças, que lhe davam cobertura. Marcelo Tas pegou carona e também saiu com a mulher, tipo aquele sujeito que aproveita a ambulância abrindo o tráfego pelas ruas.

Passada essa situação, para a qual os tais seguranças no corredor foram escalados, RC começa a cantar ‘Jesus Cristo’ e uma multidão começa a avançar, aglomerando-se diante do palco. As entendidas no assunto sabiam que essa música finalizaria o show e se aglutinavam na frente para conseguir as famosas rosas distribuídas ao seu final. Eram muitas dezenas de mulheres, senhoras em sua maioria, em pé, gritando histéricamente, se acotovelando aos empurrões, para conseguir se aproximar do Rei.

Exatamente atrás de mim, uma senhora, na casa dos seus sessenta e muitos anos, mais contida, porém indignada, gritava com as demais, no meio do ‘empurra-empurra’:

‘Bando de velha safada! Sem-vergonha! Vocês são umas velhas sem-vergonha!’

Sua mãe, com uns oitenta e muitos, sentada ao seu lado, ameaçou levantar-se, no que foi incisivamente repreendida pela filha: ‘Mãe, fica sentada! Não vai levantar não! Fica quieta!’

E para não perder o bonde, finalizou, olhando para a multidão de senhoras que gritavam tal qual adolescentes no show do Justin Bieber: ‘Velhas safadas!!!!’. Eu não me contive e caí na gargalhada.

Os seguranças do corredor aos quais me referi há pouco, naquele momento já haviam sido pisoteados pela multidão de ‘vovózinhas  e tiazinhas’ em busca de uma rosa. Eu mesmo, em determinado momento, temi por minha integridade física. A situação podia ficar perigosa, com pessoas caindo umas sobre as outras e tudo mais. Felizmente, nada disso aconteceu. Havia um espaço de três metros entre o palco e a primeira fileira, e quem buscava uma rosa foi até lá, depois de alguns sopapos e uma ou outra cotovelada. É possível que tenham conseguido, já que o RC distribuiu muitos buquês ao final do show.

Foi um tremendo programa de sábado à noite. Me emocionei, gargalhei, tive até medo. Tudo no mesmo pacote. Saí de lá sem saber se estava mais impressionado com as ‘velhinhas safadas’ (título dado pela senhora da fileira de trás), que mesmo após algumas décadas, mantinham o espírito festivo e fôlego para os gritos histéricos, ou com o próprio RC, certamente um dos últimos ícones do mundo artístico capaz de encantar várias gerações ao mesmo tempo. Naquele ginásio havia umas quatro. Hoje, o mundo é mais ‘rápido’ e o sucesso, mais efêmero. Com certeza, daqui a 50 anos não haverá um outro Roberto Carlos, tampouco shows como esse. Para guardar na memória e revigorá-la…

4 Comments
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4 Comentários

  1. sonia pedrosa

    16 de novembro de 2012 em 08:23

    Roberto Carlos – a trilha sonora da minha infância e adolescência! Ainda hoje, gosto muito dele! E sempre que posso, vou ao seus shows. Realmente, é uma experiência e tanto. E como tantos, vou às lágrimas… rsrsrs
    Belo texto!!! Abração!

  2. Sonia Loyola

    16 de novembro de 2012 em 09:46

    Da próxima vez me avise com antecedência para que eu possa ir junto
    e fazer uma viagem no tempo revivendo boas emoções……
    Bjs

  3. Carla Freitas

    24 de novembro de 2012 em 16:26

    Victor, amei este post! Voce fez com que eu me sentisse la, no show. Espero ter um dia a chance de assisti-lo ao vivo!

    1. Victor

      24 de novembro de 2012 em 17:08

      Do jeito que o RC está bombando, não me surpreenderia se ele fizesse um show na China 🙂

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