Desigualdade x Injustiça: reflexões brasileiras

O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, mas esse não é seu problema mais grave. Intolerável é que seja um dos mais injustos. Faço questão de separar esses dois substantivos: injustiça e desigualdade. Muito embora ambos andem de mãos dadas em diversas análises (equivocadas, no meu entendimento), a desigualdade muitas vezes é justa e a injustiça em algumas ocasiões se manifesta na igualdade.

A desigualdade faz parte da natureza humana. Somos indivíduos muito diferentes, com habilidades, virtudes e fraquezas completamente diversas. É irracional esperar que de um acervo tão heterogêneo de humanidade tenhamos algo próximo à igualdade. Forneça um punhado de capital a 10 pessoas e lhes dê um ano de usufruto: ao final do período encontrará os dez em situação completamente diferentes, dos que torraram o patrimônio aos que o multiplicaram. Peça a um grupo que estude por conta própria um livro de matemática: haverá os que progridem de maneira espetacular e outros que não passam da segunda página. Faça o mesmo para interpretação de um livro de poesias e o resultado tende a ser oposto. Como podemos esperar na igualdade um ‘fim’, uma vez que vivemos em um mundo naturalmente desigual?

Isso não significa que os indicadores de desigualdade brasileiros sejam motivos de orgulho, muito pelo contrário. São vergonhosos. Mas não por demonstrarem que o país é extremamente desigual, e sim por camuflarem que somos uma sociedade absurdamente injusta. Assim, fica difícil contestar o fato de que há normalidade na desigualdade. O grande desafio brasileiro é que estamos a anos luz de prover condições essenciais para que os cidadãos se desenvolvam e disputem boas oportunidades. Como irão aproveitá-las é outra história.

Se o sujeito nasceu em uma comunidade pobre, carente de um Estado que lhe ofereça condições decentes de educação, saneamento, saúde, segurança, será um mérito passar sua vida ao largo do crime. Mais virtuoso se conseguir terminar o ensino médio. E se completar uma boa faculdade e ascender socialmente, teremos um herói teimoso. As condições de equidade ficam menos ruins à medida que avaliamos as camadas mais abastadas da população, e mesmo assim há um abismo entre a qualificação da educação entre aqueles da classe média baixa, notadamente em escolas públicas e aqueles das classe média e alta, que frequentam escolas particulares. Isso restringindo-se ao assunto educação, o fenômeno é o mesmo em outras áreas.

A ausência de um Estado eficiente fomenta a injustiça, aumentando o ciclo vicioso da desigualdade. Poucos tem acesso aos pré-requisitos do desenvolvimento, seus descendentes passam a ter uma vantagem natural que é perpetuada por gerações. A riqueza se torna cada vez mais concentrada e a incompetência do Estado em qualificar aqueles que estão na base da pirâmide amplifica o problema. O risco é tentar resolvê-lo no ‘decreto’. Não funciona.

No Brasil, ouve-se muito a falácia de que a desigualdade caiu na primeira década desse século. É uma mentira contestada por poucos e infelizmente raramente desmistificada. Ao considerarmos a riqueza gerada pelos investimentos financeiros e ganhos de capital (privilégio dos mais ricos), conclui-se que a desigualdade também cresceu nesse período. E isso não necessariamente seria ruim se tivéssemos reduzido a injustiça. Alguém aí acha que a vida daqueles que nasceram na margem da linha da pobreza está mais fácil hoje do que há trés décadas? Ok, temos muito menos famintos e muito mais pessoas com televisão e refrigerador em casa do que ao final do século passado, mas e o resto? A sensação é de que não evoluímos.

Como resolver o problema da injustiça é trabalhoso demais e envolve planejamento de longo prazo (que transcende à qualquer ideologia econômica). Infelizmente, no Brasil a preferência é por soluções que dão um ‘tapa’ na área externa da casa, sem mexer um fio na rede elétrica comprometida, nem trocar o encanamento repleto de vazamentos. Vejamos o exemplo do bolsa-família: um importante analgésico contra a miséria, é verdade, mas nem de longe solução definitiva e tampouco motivo de ‘orgulho eleitoral’ o fato de termos 40-50 milhões de pessoas assistidas, sinal inequívoco de nosso fracasso em prover condições mínimas para que as famílias gerem renda com seu trabalho. A saída do programa, que deveria ser um de seus objetivos, nunca foi motivo de preocupação. Nos conformamos com um ‘bolsa família’ para os mais pobres e ponto. E ‘ai’ daquele que achar isso pouco…

No Brasil, a partir de uma renda mensal de R$ 8.400, despenca a chance do sujeito ser assassinado. Quer dizer, vivemos em um país que pode até ser medianamente seguro aos 5% mais ricos, mas é o mais violento do mundo para os 95% mais pobres. Se averiguarmos as fontes de tamanho contraste, perceberemos que são as mesmas que geram os indicadores humilhantes na educação, saúde, mortalidade infantil e que acabam permeando a rotina brasileira. Olha aí a injustiça.

E pasmem, é justamente sobre essa parcela da população mais afetada pela injustiça que a carga tributária é mais elevada! Como nosso sistema tributário é muito focado no consumo, adivinha quem proporcionalmente paga mais imposto? Aqueles cuja renda é toda direcionada ao consumo e não conseguem poupar. Bingo!!!

Nossa previdência social é mais um exemplo notório de injustiça: um servidor público aposentado custa em média 17x mais ao estado do que seu equivalente na iniciativa privada. Ninguém em condições normais de sanidade concorda com esse desbalanceamento.

A injustiça, e não a desigualdade, deveria ser combatida. É normal alguém que faça algo melhor colher os frutos de seus méritos. Isso promove o desenvolvimento. É injusto que esse alguém faça algo melhor só porque herdou privilégios. Há uma diferença crucial nas duas situações.

Para que a maioria dos brasileiros possa ter acesso às ferramentas que lhes permitam progredir, o estado deve ser menor e mais eficiente, garantindo que as condições essenciais a todos os cidadãos sejam similares. Precisamos erradicar a injustiça e não a desigualdade. Se o fizermos, o mundo desigual já não terá tanta importância.

6 Comments
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6 Comentários

  1. Marcia C Wright

    5 de março de 2017 em 22:46

    Dessa vez vc se superou! Magnífica arguição VH!

  2. Roberta Ferrari

    6 de março de 2017 em 01:34

    Profundidade e Assertividade.
    Excelente texto.

    Roberta Ferrari

  3. Humberto Bocayuva

    6 de março de 2017 em 18:18

    Muito bom texto Victor!
    A coisa que mais me preocupa neste quesito de desigualdade é que a classe média alta aceite este tipo de injustiça – às vezes até mesmo a incentive pela corrupção ativa ou passiva.
    No meu tempo de Unicamp tinha uma pixação que era uma verdade: não haverá paz para os ricos enquanto não houver justiça para os pobres!
    Parabéns pelo texto!
    Abs

  4. Paulo Buchsbaum

    31 de julho de 2017 em 04:02

    Excelente, Victor. A distinção entre injustiça e desigualdade é muito relevante para separar o joio do trigo. E, infelizmente, não temos grande probabilidade da situação melhorar muito nos próximos anos., já que a tendência é que poder seja intercalado por grupos que veem muitos mais seus interesses imediatos do que reais ações estruturantes.

    1. Victor

      1 de agosto de 2017 em 09:53

      Eu diria q a chance de melhorar é de 0%

  5. Christina Carvalho Pinto

    7 de junho de 2018 em 10:44

    Belissima reflexão, Victor. Somos desiguais porque cada ser é único e aí reside uma das magias da Vida. Mas a manipulação das desigualdades é realmente o X da questão. Abraços

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