Um conto brasileiro

As águas de Março inundavam São Paulo, e já causavam preocupação a José João, pois uma árvore de dimensões razoáveis enraizada na calçada envergava perigosamente em direção ao seu sobrado. Se tombasse, o telhado da garagem onde ficavam os dois carros da família iria para o chão. Em vão havia procurado a prefeitura, em três verões distintos ouvira que o máximo que podia ser feito seria podar alguns galhos periféricos. Àquela altura, seria uma ação inócua, pois a frondosa se estendia com seus galhos robustos e altos em direção ao sobrado, como que para abracá-lo. Seria um abraço de urso.

O castigo das águas não cessava e eventualmente acompanhado de vento forte causavam estragos em vários bairros da cidade. Eram recorrentes as reportagens sobre os danos causados pela chuvarada. José João não queria ser protagonista do telejornal da noite. A árvore inclinada em direção ao sobrado gereva comentários dos pedestres e não raro ele ouvia conselhos de desconhecidos para que podasse aquela árvore o mais rápido possível, para se prevenir ante uma tragédia iminente.

José João decidiu se livrar da frondosa. Não iria esperar pelo próximo dilúvio. Ele se informou pela internet e com um jardineiro conhecido que se arrancasse uma árvore, deveria plantar outra na região, para livrar-se de uma multa. Como não conseguia informação da prefeitura, resolveu ser ousado. Por uns mil-réis contratou um grupo de três ‘faz-tudo’ que logo cedo naquela manhã de sábado deram um fim à frondosa.Era uma atividade ‘ clandestina’, e JJ sabia disso, `A tarde, foi até uma pracinha a três quadras dali e plantou duas árvores, ‘o dobro do requisitado’, pensou ele.

No final da dia, recebeu a visita de dois fiscais da prefeitura. ‘Incrível’, pensou JJ. ‘Passei anos buscando pelo procedimento correto e nunca obtive nada mais que respostas vagas e contraditórias. Foi só derrubar a frondosa que em menos de quatro horas, tenho que prestar contas a esse pessoal’. JJ, ciente de que isso poderia acontecer, trouxe as fotos das árvores plantadas. Os fiscais agradeceram, mas um deles constestou que aquela lei era válida quando a árvore se encontrava dentro do terreno da sua casa ou condomínio. Como a frondosa estava na calçada, somente a prefeitura poderia arrancá-la. ‘O senhor cometeu dois crimes: um ambiental e outro contra o patrimônio público. Está ciente disso? ‘. JJ gelou. Via no semblante daqueles dois a vontade descarada de complicar sua vida ou ganhar alguma coisa com aquela situação. Mostrou as fotos da árvore quase tombando sobre o seu sobrado, mas aquilo não sensibilizou os fiscais. ‘Somente a prefeitura poderia fazer isso.’ JJ, usualmente tranquilo, mas já a ponto de perder as estribeiras, falava em voz alta, dedo quase em riste: ‘Mas vocês nunca deram a mínima para o meu problema’. Quando ouviu ‘a árvore estava aí bem antes de você construir a casa’, teve vontade de partir para cima do sujeito, mas foi sabiamente contido por sua mulher. Convidou um pouco rudemente os fiscais a se retirarem, não sem antes escutar que em breve teria notícias da Justiça. Ficou feliz em não ter cedido `a tentação da conversa sobre ‘ propina’…

O dia seguinte foi um domingo de chuva torrencial. Na sua rua, JJ testemunhou a queda de um poste e uma árvore. Fatalmente ele teria sido protagonista de uma catástrofe natural, caso não tivesse colocada a frondosa abaixo. Safou-se. Mas ganharia um problemaço dali em diante e estava ciente disso. Na proteção das árvores, o Estado agiu rápido. Na quarta-feira lá estava JJ na sub-prefeitura do seu bairro, tomando um chá de cadeira, aguardando para prestar depoimento sobre o crime ambiental que havia desumanamente cometido. A espera era proposital, pensou ele. Foram quase duas horas, sob o pretexto de que tratava-se de um dia muito intenso para o departamento. Engatou uma conversa com um sujeito a seu lado, que buscava um atestado de cumprimento de serviço social. Achou aquilo estranhíssimo, e seu interlocutor lhe disse que era biólogo e foi processado pela posse de alguns animais silvestres sem a devida documentação. Ele os mantinha em sua casa para estudo relativo à sua tese de doutorado. JJ logo imaginou alguma coisa muito exótica, mas decepcionou-se ao saber que se tratavam de alguns roedores. ‘Processado por não buscar a documentação de ramsters gigantes’, brincou ele. E foi isso mesmo. Seu advogado conseguiu trocar a sua condenação por um ano de serviços socias, prestados alternadamente em um posto de saúde e em uma creche que estavam sob jurisdição daquela sub-prefeitura. Ele viera buscar a certidão de que havia cumprido a ‘pena’, para apresentar à Justiça. Ao comentar a razão de sua presença ali, JJ ouviu do biólogo, em tom irônico: ‘O Brasil cuida muito bem de suas árvores e de seus bichos’.

O resultado da conversa de JJ com o chefe do departamento foi um sermão de 15 minutos sobre a importância da preservação das árvores e o papel da prefeitura em zelar por esse patrimônio verde, e também uma multa que correspondia a meio carro zero kilômetro, do tipo popular. Não adiantaram as justificativas de que a frondosa estava condenada e que cedo ou tarde cairia sobre a sua casa. JJ também não tinha aquele valor à vista, pois recentemente tivera despesas com seu filho mais velho, que havia se formado e obtivera um estágio nos Estados Unidos. A duras penas, parcelou a multa em dez vezes. Como havia saído cara aquela brincadeira! ‘Pelo menos não serei condenado na Justiça por crime ambiental’, pensou ele, em referência mental ao biólogo que acabara de conhecer. ‘O Brasil cuida bem dos seus bichos e árvores.’

Deixara os funcionários do seu pequeno comércio de sobreaviso, pois não iria trabalhar naquela tarde. Antecipando a epopéia burocrática que enfrentaria, reservara as horas que restavam do dia para o custoso velório da ‘frondosa’. Enfim, havia terminado. Ligou para sua mulher e contou sobre a multa, ela quase surtou. ‘Paciência’, disse ele. Está feito. ‘O Brasil cuida bem dos seus bichos e árvores’, ele disse. ‘Bichos?’, retrucou a mulher. ‘É outra história, depois lhe conto. Chegarei mais cedo hoje’.

Ao abrir a porta do seu carro, estacionado à duas quadras da sub-prefeitura, sentiu a pressão gelada do cano de um revólver em sua nuca. ‘Entra pela porta de trás! Quieto! Rápido, antes que eu acabe contigo!’. Era um sequestro. Foi para o banco traseiro com um bandido, com a arma apontada para seu peito. O outro dirigia. ‘Vamos para o caixa eletrônico mais próximo! Tem conta em que banco? Passa a carteira! Se você se comportar, sai vivo dessa! No último ano, só matamos três, tiozinho! Se comporta! Nervoso como nunca, sem conseguir focar sua atenção em nada, JJ entregou a carteira ao bandido, que exclamou tão logo a abriu: ‘É no de sempre, Pirata!’.

Sacou o limite máximo, acompanhado do Pirata, e voltou ao carro. ‘Agora, vamos passear um pouco, tiozinho!’. Rodaram por uns trinta minutos, se afastando da região. Durante o trajeto, os bandidos travaram um diálogo com poucas palavras conhecidas no meio de muitas gírias até então jamais ouvidas pelo JJ, que seguia quase em transe, ainda sem conseguir se concentrar. Incrivelmente, ele não finalizava a sequência de um pensamento. O bandido que o rendera seguia com a arma apontada para ele. ‘Uma lombada inesperada e eu já era’ , pensou JJ. A tortura emocional continuou por mais 15 minutos, a essa altura ele já estava bem longe de sua casa, trafegando por lugares inóspitos. Tocou o celular. Era sua mulher, preocupada com o fato dele ainda não ter chegado. ‘É a minha mulher’, balbuciou. ´Atende essa merda, Bode!’, gritou o pirata. ‘ Tiazinha, estamos com o seu marido e ainda não decidimos se vamos deixá-lo, vivo. Boas chances’, e desligou. Pronto, o terror estaria instalado também em casa, com mulher e filha desesperadas. ‘Seu mané!!! Agora ela vai chamar a polícia!’ , gritou o Pirata com o Bode! ´Sai do carro, tiozinho!´. Pararam o carro. O bandido que estava atrás, saiu do carro e o tirou dali, a pontapés. Ficaram com a sua carteira, e o seu celular, agora desligado.

Desnorteado, vagou uns minutos pela vizinhança desconhecida. Estava sem carro, sem carteira, celular. Mas, vivo. As pernas tremiam, ele ainda não conseguia raciocinar direito. Em um local onde havia um agrupamento de pessoas, explicou a situação. Ligou para casa. Alívio geral. Mulher e filha choravam compulsivamente. Elas vieram buscá-lo, e foram para a delegacia. Precisava fazer um boletim de ocorrência. Mais duas horas de espera até que todo o procedimento fosse seguido. ´Seu carro vai aparecer em alguma quebrada daqui a alguns dias´, disse o policial. ´Esses não são ladrões de carro´. ´Me disseram que já haviam matado algumas pessoas.´ ´É possível. ‘As vezes, prendemos esses tipinhos, mas eles passam no máximo poucos dias em cana´. Voltou para a casa, depois de um longuíssimo dia. Conforme o policial prevera, o carro apareceria dali a cinco dias, em péssimas condições, mas não o suficiente para acionar o seguro.

Naquela madrugada, agitado, não conseguiu dormir. Inquieto, resolveu navegar pela internet. Havia uma mensagem do seu filho, que ainda não sabia da epopéia. Estava há seis meses vivendo nos EUA, em um estágio obtido através da faculdade em que se formara no ano anterior, e se comunicavam sempre por email. Falavam uma vez por semana. Nela ele dizia que a empresa em que trabalhava havia lhe proposto efetivação. O salário inicial era razoável e eles cuidariam de toda a papelada para obtenção do visto. Mas ele estava com sérias dúvidas. Sentia falta do ‘ calor humano do Brasil’.

Ao ler aquilo, o sangue ferveu nas veias de JJ. Era o único desperto em casa, não podia acordar as demais. Também não convinha ligar para o seu filho, ele estaria dormindo. Esboçou uma longuíssima réplica, semi-desaforada, contando os fatos que haviam ocorrido aquele dia. Desistiu. Simplesmente escreveu: ´SAUDADE DE CALOR HUMANO É PARA OS FRACOS!!!!´. Seu filho estava online, em pouco tempo replicou: ` ?????`. JJ, versado nos sinais de linguagem da web, treplicou: `  : [ …o Brasil cuida muito bem de suas árvores e bichos, mas não cuida de  sua gente!’.

Dois dias depois, recebeu a resposta do seu filho: ‘ Aceitei. Irei viver por aqui. Obrigado! Falamos amanhã!’

 JJ fechou a portão de sua casa, em busca de um táxi. Passou pelo lugar onde estava a frondosa e pensou no email do seu filho. Seus olhos marejaram. Era o mais correto a fazer. E seguiu para mais um dia de trabalho…

3 Comments
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3 Comentários

  1. Marcio Guedes

    20 de agosto de 2012 em 20:57

    Fenomenal, Mr. Loyola.
    A frase que mais repetidamente me ocorre é:
    “o Homem é o Lobo do Homem”…

  2. Analucia Falcao

    17 de agosto de 2013 em 15:25

    Uma triste verdade, que infelizmente, nos acostumamos com ela.

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