‘ Quero te mostrar a vida dos pobres’

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‘ Vamos ao jogo?’

‘ Ôpa, claro que sim!’, respondi ao meu avô materno, de quem herdei a torcida pelo Vascão. Acho que nunca neguei um convite desses, fosse do meu avô ou do meu pai. Hoje menos, mas há 35 anos que frequento estádios de futebol.

Corria o ano de 1989 e eu vivia no Rio de Janeiro, boa parte do tempo sozinho, mas com a presença constante do meu avô, cujo apartamento em Copacabana, esquina da Toneleros com a Repúlica do Peru, me serviu de base no período preparatório para o vestibular. Por essa razão, um tempo difícil, com aulas de Segunda à Sábado e provas aos Domingos pela manhã. Suas tardes eram o que me restava de lazer e na próxima delas assistiria a um jogo nem tão esperado assim: Vasco x Nova Cidade, um desses pseudo times que surgem de tempos em tempos no estado do Rio e que nem deve mais existir.

‘ Será em São Januário?’ , perguntei, desconectado da situação do campeonato, pelo fato de estar completamente focado nos estudos.

‘ Não. Será em Mesquita’ .

‘ Ok, vamos golear!’

Mesquita era um distrito de Nova Iguaçú (desde 1999 um município emancipado) na Baixada Fluminense, bem longe da zona sul carioca. Como se tratava de um Domingo, imaginei que teríamos um roteiro sem muito trânsito. Não me importei, sempre tive uma queda por conhecer lugares novos.

Chegada a hora, após a prova dominical, estava pronto para o grande programa. Indiquei ao meu avô que ele estava sem a chave do carro, fato que me foi imediatamente esclarecido:

‘ Vamos de ônibus e trem. Quero te mostrar a vida dos pobres!’

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Não me lembro exatamente da minha reação, mas tenho certeza de que não pulei de alegria. Nada contra o plano em si, mas ele certamente nos tomaria muito mais tempo, algo que eu não tinha sobrando naquele período da vida. Além disso, se houvesse programa de milhagem para tomadores de ônibus no Rio de Janeiro, em 1989 eu seria cliente ‘ Platinum’. Só que a cereja do bolo não era o ‘ busão’, com o qual estava plenamente familiarizado, e sim os trens da estação Central que partiam rumo à Baixada. Eis uma novidade para mim. Era para lá que iríamos.

‘ Tudo bem, é Domingo. Será rápido’, pensei.

vidadospobres3Chegar na estação da Presidente Vargas foi fácil. O local é uma espécie de sorvedouro das linhas de ônibus, quase todos passam em sua redondeza. A área era ocupada por dezenas de camelôs, vendedores de tranqueiras, biscoitos de polvilho Globo e Mate, perfeitamente descrita no filme Central do Brasil, sucesso nacional da década seguinte, e relativamente vazia naquela tarde, acostumada que é ao formigueiro humano dos dias de semana. Não comentei com o meu avô, mas o plano dele parecia um pouco furado, já que o retrato mais apurado da vida dos pobres seria de Segunda à Sexta…’ Melhor não dar ideia’ , pensei eu.

O trajeto de trem até Mesquita levaria uns 50 minutos. Nada mal, ainda mais se pudéssemos encontrar assento livre. A estação era maltratada. Mesmo com baixa ocupação, essa era uma conclusão óbvia. Você é capaz de dizer se um lugar é bem cuidado indo ao banheiro e olhando para o chão. O primeiro, imundo e em estado precaríssimo, seria rejeitado pela mais contundente dor de barriga. O piso era sujo e quebrado em várias partes, conseqüência natural de material barato e inadequado ao tráfego de multidões. Mesmo em uma tarde tranquila de Domingo, era evidente que o poder público dava de ombros aos pobres, fato perceptível a qualquer um, inclusive a mim, do alto dos meus 16 anos de pouca experiência.

De imediato, não conseguimos assento no trem. Apesar da estação não estar lotada, um bom contingente de vascaínos nos acompanhava. Se vagasse algum lugar para sentar ao longo dos 31Km de percurso, a preferência seria para meu avô, que apesar de saudável aos 65 anos, precisava de descanso mais que eu. O pinga-pinga  chegava a ser irritante, tanto quanto a ausência de gentileza de qualquer passageiro em ceder o espaço a ele, que aparentemente não se incomodava com isso. Em um par de vezes, ouvi um mini-discurso de que aquilo era abarrotado nos dias de semana, praticamente intransitável e sem ar condicionado, o que no tradicional calor carioca se converte em uma sauna ao ar livre. Estava ciente de que a vida dos pobres seria mais perfeitamente retratada em outro dia, mas resolveu nos poupar da experiência prática de tomar um trem apinhado de gente, valendo-se do exercício da imaginação para indicar o quanto seria difícil para alguém utilizar-se daquele meio de transporte diariamente.

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Eis que no meio do trajeto, o trem parou. E ali ficou por alguns minutos. Cinco, dez, quinze. Nem sei dizer quanto. Fazia calor e alguns passageiros começavam a manifestar descontentamento. Eu, por exemplo. Meu avô também. Mais um pouco, chegaríamos atrasados ao grande clássico. Outros permaneciam impassíveis, conformados. Talvez estivessem acostumados a esse tipo de infortúnio; nem reclamar, reclamavam. Era assim a vida dos pobres. De nada adiantavam os murmúrios de lamentação, o maquinista certamente não podia fazer nada. Pior seria se tivéssemos que sair do trem, o que felizmente não aconteceu, pois ele voltou a funcionar e seguimos o nosso rumo. O jogo estava marcado para às 16 horas e já corríamos risco de chegar atrasados.

Desembarcamos em Mesquita e algumas quadras nos separavam do estádio, a partida estava começando. Dez minutos depois, em frente às bilheterias, a decepção: não havia mais ingressos! ‘ Como assim, não havia mais ingressos?’. A Federação enviou uma carga menor do que a demanda, e todos eles já haviam sido vendidos. Bastante gente ficou para fora. Alguns palavrões foram ditos. Não me lembro se  meu avô mandou um ‘ pqp’; se fosse eu, mandaria. Quase duas horas de viagem desde Copacabana para receber uma notícia dessas, na porta do estádio! A finalidade do passeio era assistir ao jogo, de quebra incorporando uma experiência lúdica sobre a vida dos pobres. Se o objetivo não fosse atingido, seu ‘ meio’  seria ignorado. Paciência. Caminhamos, sem ainda saber o que fazer. Foi então que encontramos à margem do estádio, que aliás era um ‘ muquifaço’, um carro com antena de TV diante de um bar, e um aglomerado de vascaínos de olho em uma telinha em preto e branco. O jogo, que transcorria ao lado, passava ali. O carro, na verdade uma Van, devia ser uma retransmissora de algum canal, e seus condutores, certamente com pena daquela gente toda sem ingresso e sem jogo, resolveram dar uma canja e colocaram a TV para fora do automóvel. ‘ Vamos ver o jogo aqui’, disse meu avô, com todo meu apoio. Afinal, estávamos lá para isso! Naquele tempo, ressalte-se, quase não havia transmissões ao vivo, exceto nas finais, TV a cabo não existia e as poltronas da sala não concorriam com os estádios.

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O embate transcorria com uma qualidade execrável, afinal o que mais esperar de uma peleja em um campo de várzea, entre um time grande e outro formado por quase amadores. É por isso que eu sou veemente contra os campeonatos estaduais, desde aquela época. Não servem para nada. Bem, aquele jogo ao menos serviria para alguma coisa, pois dentre dezenas de partidas de má qualidade que assisti na vida, me lembro bem dessa. Chegamos ao intervalo. Um 0x0 modorrento, em Mesquita, junto a um aglomerado de vascaínos com vista prejudicada diante de uma TVzinha. Não era o Domingo dos meus sonhos. Foi então que veio a notícia de que os portões estavam sendo abertos e que a entrada a partir dali era franca. Poderíamos assistir ao jogo no campo! Decisão tomada por alguma boa alma, piedosa das centenas de torcedores privados daquele show de futebol. Foi a nossa primeira manifestação conjunta de alegria na última hora, eu e meu avô vibramos quase como após um gol e fomos estádio adentro, esperançosos de ver a bola balançando as redes. Ao contrário do que eu havia prognosticado, não seria uma goleada.

Nos posicionamos atrás do gol onde o Vasco atacaria no segundo tempo. Nada mais adequado para fechar a tarde com chave do ouro. Entre um copo de água e um picolé, obtidos graças a isenção dos ingressos, voltamos nossa atenção ao jogo. Meu avô, tal como seu neto mais velho alguns anos mais tarde, não costumava levar muito dinheiro na carteira, e naquele tempo não havia cartōes de crédito ou débito. Bem, poderia também ser parte da estratégia dele para me mostrar a vida dos pobres. E o jogo seguia. A bola, coitada, apanhava como louca. Do gramado, mais esburacado que pasto de quinta categoria, e dos jogadores, aparentemente insatisfeitos em ter que trabalhar naquelas condições em uma domingueira vespertina. ‘ Podíamos estar na praia a essa hora’ , deviam estar pensando alguns deles.

Lá pelos trinta e pouco minutos, pênalti para o Vasco. Ufffffa! É agora!!!!! A torcida se animou. Finalmente, o placar sairia do zero. Um magrinho 1×0 contra o poderoso Nova Cidade, na casa do adversário. Na época, valiam dois pontos. Não sei quem se posicionou para bater, minha memória não foi capaz dessa proeza. E o sujeito bateu como a cara dele, ao estilo Messi em final de Copa América. Um fiasco. O goleiro adversário rebateu para o lado, tal qual manda a cartilha, e o Vascão desperdiçou a maior chance de sair vencedor. Eu e meu avô, vascaínos ferrenhos, não escondíamos a nossa decepção. Xingamos. E começamos a caminhar para a saída, pensando pragmaticamente em um retorno mais confortável, já que boa parte da malta também utilizaria o trem. Concretizado o 0x0, aceleramos o passo para a estação. Nosso receio era uma nova falha mecânica, o que nos proporcionaria um adicional nas horas de viagem.

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Para nosso alívio, não foi assim. A volta ocorreu sem sobressaltos. Alguns pedintes, vendedores e pastores transitaram pelo nosso vagão. Meu avô, cansado que estava e provavelmente irritado com o resultado do nosso programa de Domingo, nem deu atenção a esses últimos. Em outra situação, provavelmente discutiria religião com eles e tentaria convertê-los ao espiritismo, fé que abraçara havia décadas. Mas não ali, depois de um 0x0 contra o Nova Cidade. Chegamos quase às 21 horas em casa. Deu tempo para ver o pênalti mal batido no Fantástico. Não me recordo se houve outra menção ao segundo objetivo da tarde. Suponho que sim.

Mas nem precisava. O passeio foi rico em evidências. O péssimo estado de conservação da estação, o banheiro imundo, o piso quebrado, o trem vagaroso e com falha mecânica, a ausência de ar condicionado sob o calor de um tórrido outono carioca, a reduzida visibilidade diante de uma TV P&B, e a incômoda sensação de uma longa viagem por fazer após o término da jornada, tudo isso eram elementos rotineiros na vida dos pobres em 1989, somados obviamente à aglomeração desumana nos dias de trabalho.  Eu nunca mais fui à estação central da Presidente Vargas, mas transcorridos 27 anos, tenho certeza que pouca coisa mudou. Os pobres de hoje tem mais condições de consumo, mas sua qualidade de vida é péssima, fortemente afetada pela horrorosa mobilidade urbana Brasil afora. E vendeu-se a eles a falácia de que nunca antes na história desse país…

Meu avô, com quem sempre tive grande afinidade, cumpriu seu objetivo, tanto que aquela tarde ficou marcada para sempre, não pelo parco futebol, mas pelo exemplo ilustrativo sobre como é a vida dos ‘ mais pobres’ . Eu até que gostaria de utilizar exemplo semelhante com meus filhos, mas confesso que a criminalidade dos dias de hoje contém o meu ímpeto. Qualquer dia desse eu tomo coragem e faço algo nessa linha. É triste constatar que quase três décadas depois, o país evoluiu menos do que devia e segue segregado em caras e poucas ilhas de prosperidade, apartada da realidade de dezenas de milhões de pobres, muitos deles alçados à condição de classe média pelos institutos de pesquisa oficiais, ávidos em reforçar a visão majoritária de que estamos no caminho certo e somos uma sociedade cada vez mais rica e desenvolvida.

Outro dia ouvi no rádio que pela primeira vez na história havia mais gente no topo do que na base da pirâmide no Brasil. O detalhe é que o topo começava com uma renda mensal de R$ 2.500! Bem, se esse é o valor, urge que nossos governantes tenham uma experiência lúdica, tal qual a minha nos idos de 1989, e sejam apresentados à verdadeira vida dos pobres. Talvez concluam que um pais onde 50% das residências não tem acesso a saneamento básico é pobre, independentemente da criatividade dos que manuseiam as estatísticas. Outra alternativa seria baixar o tal corte do topo da pirâmide para R$ 1.000, arbitrar que acima disso todos pertencem às classes A e B e assumir para o mundo que ficamos ricos, após uma longa história de 516 anos! Muita gente acreditaria.

O fato é que em 2016, uma jornada domingueira de trem à Mesquita deve ser muito semelhante à que eu tive em 1989. Talvez o resultado do jogo fosse distinto, e o atual time do Vasco ganhasse do Nova Cidade de 1×0. Mas, fora isso…

Naquele ano o mesmo time que empatou com o Nova Cidade conquistaria o título brasileiro no Morumbi. Eu passaria no vestibular e me mudaria para Campinas. A partir do início da década seguinte, meu avô experimentaria uma contínua deterioração na sua saúde, até nos deixar no começo de 1998, ano em que o Vascão conquistava a América pela segunda vez. Desde então, nos acompanha do outro plano. O Brasil dos pobres caiu no conto do vigário e elegeu o engodo Fernando Collor para presidente e começávamos a era de país verdadeiramente democrático, talvez uma das mais importantes e reais conquistas de nossa história. Mas a vida na base da pirâmide, que a despeito das estatísticas, ainda representa dezenas de milhões de pessoas, segue pobre, por mais que bens de consumo tenham sido agregados às suas rotinas…

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2 Comments
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2 Comentários

  1. Edu

    2 de novembro de 2013 em 21:46

    Vitao, então você já teve um dia de vida na “espiral negativa da pobreza”! Abs, edu

  2. Flávia

    3 de novembro de 2013 em 17:35

    Victor, que beleza!
    Adoro a maneira como descreve. Fez-me lembrar dos finais de semanas com meu avô, ele nos levava na no museu da aviação, fábrica de caminhões da Scania e Volvo, adorava carros…

    bjos

    Flávia

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