A saída dos 8.332 cubanos do ‘Mais Médicos’, que abrange aproximadamente 16.150 profissionais espalhados pelo Brasil, será o primeiro grande desafio social do governo Jair Bolsonaro. Antes de avaliarmos as circunstâncias atuais, é importante relembrar suas origens.
Em resposta às mega manifestações de Junho de 2013, que quase colocaram o Brasil abaixo, o já cambaleante governo Dilma criou o programa Mais Médicos, com o objetivo de levar assistência às áreas mais pobres e distantes do país, que até então tinham cobertura precária de profissionais de medicina.
Nessa época, o Brasil contava com 1.8 médicos para cada 10.000 habitantes, superior ao índice mínimo recomendado pela ONU (1.0), mas inferior à média dos países desenvolvidos, que se aproximava de três. O problema é que essa era uma média com alto desvio padrão, as cidades maiores com índices bem melhores (dobros, triplos e quádruplos) e as menores e distantes com pouquíssima cobertura.
O governo brasileiro então fechou acordo com Cuba, cujo maior produto de exportação são médicos, enviados para mais de duas dezenas de países subdesenvolvidos. O contrato de trabalho dos profissionais cubanos com a ditadura da ilha caribenha é draconiano. Essa última morde 75% do salário pago aos seus funcionários, proíbe a companhia permanente de familiares e restringe a liberdade de ir e vir. Os primeiros aceitam os termos por que mesmo essas condições lhes proporcionam um salário muito maior que os irrisórios $30 mensais que ganhariam em seu país de origem, onde o excesso de médicos muitas vezes nem permite o exercício da profissão.
À época, houve muitas críticas ao contrato e ao fato dos médicos do programa não serem obrigados a fazer a prova de validação do diploma, exigida para todos os formados no exterior que venham a exercer a profissão no Brasil (a situação foi posteriormente referendada pelo STF). Na ausência de outra solução melhor, vieram os cubanos.
Inicialmente, eles chegaram a representar 75% dos médicos do programa, e hoje são metade deles. Brasileiros tem prioridade na escolha dos municípios, seguidos de brasileiros formados no exterior e estrangeiros. Isso faz com que os cubanos em geral atuem em locais mais pobres e distantes. Exemplo disso são as comunidades indígenas assistidas, quase sua totalidade (300) são atendidas por eles.
Ao longo desse período, houve os que se rebelaram com as condições contratuais impostas pela ditadura, pois muitos percebiam a diferença entre seu salário líquido e de outros colegas estrangeiros. Do valor de R$ 11 mil pago aos médicos, os cubanos não ficavam com mais de R$ 3 mil. Outros tantos se casaram com brasileiros (as) e solicitaram cidadania, mas os que deram voz à insatisfação não modificaram a natureza das coisas na ilha dos Castro.
É verdade também que o tom das críticas tinha um certo fundo ideológico, uma vez que a proximidade, muitas vezes suspeita, do governo petista com Cuba (vide os empréstimos camaradas do BNDES para a construção do Porto de Mariel) irritava boa parte da população, mas o tempo tratou de silenciar aos poucos os ruídos opositores.
Cinco anos depois, o programa Mais Médicos, apesar de controverso, está longe de ser considerado um fracasso, pois levou saúde básica aos rincões do Brasil. Trabalha-se obviamente muito mais na prevenção, mas sem dúvida que foi um avanço para locais onde antes nada havia. Em Julho de 2013, 374 municípios não tinham a presença de médico. Desses, 148 hoje contam com o trabalho de um profissional cubano. A cobertura também aumentou para 2.2 médicos para cada 10 mil habitantes, uma melhoria de 22% em meia década.
O contraponto é que o governo federal gastou nesse período R$ 5.7 bilhões que fluiram diretamente aos cofres cubanos, montante capaz de formar 52 mil novos médicos em caráter permanente ou bancar a construção de 14 mil unidades básicas de saúde. Por outro lado, a formação de um médico leva seis anos e um posto de saúde não funciona sem um profissional da área. Apesar de não ser uma solução definitiva, a participação de estrangeiros no Mais Médicos tornou-se imprescindível para atenuar um problema histórico gravíssimo, o de mover a saúde do centro para a periferia.
Jair Bolsonaro é um costumaz crítico de Cuba e das benesses que seu governo desfrutava com o Brasil petista. Eleito presidente, teve seu discurso endossado pela maioria dos eleitores. Nas semanas seguintes à sua vitória, subiu o tom e condicionou a manutenção dos cubanos no Mais Médicos ao pagamento de um salário justo, à possibilidade de trazerem as famílias e à necessidade de revalidação do diploma. Ninguém pode negar que são todas exigências corretas, que já deveriam ter sido negociadas por Dilma Roussef na largada do programa. Ocorre que o seu interlocutor é uma ditadura e atender a essas demandas estaria completamente fora de cogitação para Cuba, por se tratar de um precedente que poderia inviabilizar seu principal produto de exportação.
Sua negativa era mais que esperada, assim como a saída dos médicos cubanos. A ditadura não se deixou intimidar e sacrificou pró ativamente uma importante receita de exportação, retirando-se imediatamente do programa. O retorno dos médicos começa a partir da semana que vem e estende-se até o final do ano. Bolsonaro garantiu asilo político aos dissidentes, mas isso não passa de retórica com pouca efetividade, uma vez que suas famílias não estão no Brasil…
O Ministério da Saúde diz ter condições de recrutar novos médicos em tempo recorde, a partir de editais de contratação em andamento. É pouco provável. Antes do anúncio de Cuba, havia 2.000 vagas em aberto. A partir de agora, serão 10.300. Não parecem muitas quando comparadas aos 452 mil médicos atuantes no Brasil, apenas 2% do total. Porém, historicamente o preenchimento das vagas menos atraentes nunca foi exitoso. O salário de R$ 11 mil, mesmo não sendo ruim, é incapaz de atrair profissionais dos grandes centros e as limitações orçamentárias do governo federal não permitem propostas mais ousadas. Os municípios, particularmente os mais afetados, mal conseguem andar por conta própria, precisam da União para tudo, e não tem condições de ajudar. A verdade é que a presença dos cubanos era um conveniente tapa buraco para a usualmente incompetente gestão da saúde pública no Brasil.
Tem-se então um ‘problemaço’ à vista: um potencial de 28 milhões de pessoas que ficarão desassistidas ou com os atendimentos básicos seriamente prejudicados, justamente nas localidades mais carentes. Colocar a culpa na ditadura cubana pode funcionar por um breve período, mas a insatisfação com o retorno à precariedade logo se voltará contra o governo de plantão.
Desse episódio, é possível inferir algumas conclusões. Primeiramente, parece que Bolsonaro ainda não se deu conta que suas palavras enquanto presidente eleito tem infinitamente mais peso do que quando era um deputado oposicionista. Como diz um famoso presidiário brasileiro, na oposição é fácil viver de bravatas. Era possível tratar o tema de forma gradual, sem causar uma disrupção. Quem sabe negociar uma transição com o governo cubano, que afinal de contas, preza muito pela receita e não iria descartá-la mediante tratamento diplomático adequado.
‘Cuba não marece esse tratamento, é uma ditadura’. É verdade, mas trata-se de enrascada em que o governo petista racionalmente se meteu, pelas razões já expostas nesse artigo, e da qual é impossível se livrar sem algum efeito colateral. No caso, a consequência direta da ruptura é um impacto no atendimento básico de saúde a mais de duas dezenas de milhões de pessoas. O que é melhor: causar dano à ditadura cubana ou a 20 milhões de brasileiros?
Outra conclusão óbvia é que negócios com ditaduras de araque nunca acabam bem. Cedo ou tarde paga-se o preço pelas ligações perigosas. O Brasil não resolveu o problema de dependência dos médicos cubanos e agora enfrenta uma situação muito mais crítica. Isso também acontece quando soluções temporárias se tornam definitivas, situação típica dos acomodados.
Finalmente, se a figura do novo ministro da saúde, ainda indefinida, já era importante, agora tornou-se essencial. Quem ocupar essa cadeira já começará devendo. Será inadmissível e o presságio do fracasso se essa for uma indicação política. É fato que Bolsonaro evitou essas armadilhas nos primeiros anúncios, mas sempre pode ceder à tentação. Não nesse ministério.
O presidente eleito tem um grande problema para resolver. Podemos dizer que ele era inevitável, e será uma afirmação verdadeira. Mas não precisava ser antecipado para o primeiro dia de governo. Agora veremos como se comportará a nova gestão em sua mais séria crise auto infligida. Para o bem de muitos milhões de brasileiros, esperamos que exceda às expectativas e contrarie as probabilidades.
Jair ‘trucou’, para delírio dos seus admiradores, mas tomou um ‘seis’ na cara.
Agora avalia as próprias cartas. Esperamos que tenha uma boa ‘mão’, mas é prudente não chamar ‘nove’…
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Victor Loyola
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