Enigmas marineiros

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Em 2010, Marina Silva foi a surpresa das eleições. Com um escasso minuto e vinte e três segundos de programa de TV, fornecidos por um PV que a abrigou sob sua legenda, ela agregou quase 20 milhões de eleitores e 20% dos votos válidos. Na época, foi peça fundamental para a ocorrência do segundo turno, da qual se afastou com uma neutralidade que agradou a petistas e decepcionou tucanos. Sorrateiramente, o destino a convidou para mais uma vez ter papel decisivo em uma eleição presidencial, da qual ela pode sair como principal protagonista.

Nesses quatro anos, o Brasil do crescimento pujante no ano da última eleição, fator que energizou a candidatura Dilma, conviveu com uma economia de resultados pífios e cada vez mais fragilizada por um dos piores desempenhos entre os latino-americanos e emergentes. Escândalos de toda ordem continuaram parte da rotina em diversas esferas administrativas (municipal, estadual e federal)  e no Congresso, e em meados do ano passado, essa mesmice no trato da coisa pública desencadeou em um período incomum de intensa turbulência. A população, outrora bovinamente pacata, encampou manifestações por todo país com objetivos difusos, mas que reverberavam o desejo de manifestar sua insatisfação. A partir daquele momento, a presidente Dilma era desalojada do pedestal que a colocava em rota tranquila para a reeleição. Sua popularidade caiu drasticamente e apesar da ligeira retomada, nunca mais voltou aos níveis anteriores. A única política brasileira que saiu mais forte desse período foi Marina Silva, exatamente por ser a encarnação da ´probidade´.

O fracasso na tentativa de homologar seu partido, a Rede Sustentabilidade, demonstrou que lhe faltava a devida estrutura ou mesmo traquejo para lidar com as regras do jogo político brasileiro. Outros novos partidos, com muito menos potencial, conseguiram se estabelecer na mesma época e superar os obstáculos burocráticos que se impõem à criação de qualquer legenda. Esse evento transmitiu uma percepção de ´amadorismo´ dos correligionários da Rede, que talvez equivocadamente assumiram que ´curtidas´ no ´Facebook´ bastavam para legitimar suas aspirações. Entretanto, mesmo à revelia das discussões partidárias, a população reconhecia Marina como a principal adversária do governo nas pesquisas. No mês de Abril, ela chegou a aparecer com 27% das intenções de voto para o primeiro turno.

enigma3Impossibilitada de concorrer pela sua Rede, Marina aceitou que ela fosse incubada dentro do PSB, aliando-se a Eduardo Campos como sua candidata a vice-presidente, em uma inesperada coligação que uniu dois dissidentes do atual governo em torno de uma terceira via que pretendia se apresentar viável diante dos eleitores cansados do duopólio PT-PSDB. Foi uma jogada de mestre de Campos e uma atitude de notável desprendimento de Marina, que aceitou um papel coadjuvante, mesmo com o triplo de intenções de voto que o seu parceiro naquele momento.

Até a fatídica tragédia que tirou a vida de Eduardo e outras seis pessoas em acidente aéreo no dia 13 de Agosto, Marina ainda não havia conseguido transformar seu capital político em votos para a candidatura pessebista, que se estabilizava ao redor de 10% das intenções, apesar da baixíssima rejeição. Esperavam que o início da propaganda eleitoral os alavancassem para uma improvável segunda colocação que lhes proporcionariam o confronto com a chapa governista no segundo turno. Entreveros por conta da falta de flexibilidade dos ´marinistas´ em relação ao apoio do PSB a algumas candidaturas estaduais geravam um desconforto entre os dois grupos, sempre contornado pela habilidade de Campos, mas nunca totalmente eliminado. Havia também uma desconfiança de alguns setores, particularmente vinculados ao agronegócio, sobre o posicionamento tido como radical de Marina e seus correligionários em relação a assuntos de sustentabilidade que podem impactar a agricultura. A própria colocação de Campos nas pesquisas, em um distante terceiro lugar, fazia com que esse tópico não fosse uma pauta importante para a mídia.

Eis que o inesperado traz Marina novamente à posição de cabeça de chapa, provavelmente complementada por algum político com fortes vínculos ao PSB. Logo na primeira pesquisa, ela aparece empatada com Aécio Neves no primeiro turno e quando confrontada com Dilma no segundo, fica à frente, no limite do empate técnico. Não se trata de resultado oriundo da comoção pelo trágico acidente fatal com Eduardo. Marina nunca deixou de apresentar esses percentuais quando seu nome era colocado na disputa. Em relação à última eleição, seus oponentes são mais vulneráveis. Um governo postulante à reeleição cuja gestão é altamente questionada e o PSDB patinando ao redor de 20% há um par de meses, a despeito da alta rejeição associada à presidente. É bom que se destaque uma conclusão pouco vista na imprensa: Marina não se tornou da noite para o dia uma estrela popular, ela apenas manteve o seu capital político. O que transforma o seu retorno à disputa em uma novidade que traz alto grau de incerteza no resultado da eleição é o fato de que seus adversários atuais são mais fracos.

E o que fará Marina Silva daqui em diante? Seu potencial eleitoral crescerá ou diminuirá? O que ela tem a dizer? Ainda não há respostas para essas perguntas. São enigmas marineiros.

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A princípio, Marina estará alinhada com o programa propositivo esboçado por Eduardo, nada de voo solo. Há um compromisso a ser cumprido com a aliança que a acolheu. Não sabemos até que ponto os conflitos inerentes às diferentes visões de mundo entre marineiros e pessebistas prejudicarão a campanha da terceira via. Qual será a habilidade da nova timoneira, tida como inflexível e pouco aberta a concessões, em lidar com essas rusgas? Em que medida uma gestão ineficiente dessa relação comprometerá os rumos da campanha?

Esse ano, Marina contará com exíguos 47 segundos a mais que na última eleição em sua propaganda diária de TV, totalizando cento e vinte e oito. Quase nada diante do latifúndio de 10 minutos da presidente Dilma e muito pouco perto dos 4:30 minutos de Aécio. A princípio, é uma desvantagem. Mas qual será o real efeito do tempo de TV na primeira eleição com as redes sociais funcionando em sua plenitude? Costuma-se dizer que excesso de remédio é veneno, e o governo de plantão deve tomar cuidados em relação a essa armadilha. No caso de Marina, há muitas críticas sobre a falta de profundidade em alguns posicionamentos da Rede, genéricos na essência. Seu detalhamento poderia fazer emergir evidentes contradições entre o discurso que agrada ao ´mercado´ e as convicções social-ambientalistas contidas no ´DNA marineiro´. Vista por esse lado, a menor exposição pode lhe ser favorável. Existe a possibilidade dela explorar sua condição de símbolo ´anti status-quo´, sem detalhar as possíveis contradições do conteúdo programático. Não resta dúvida de que essa debilidade será atacada pelos adversários, mas até que ponto isso incomoda a grande massa de eleitores desiludidos, insatisfeitos e indecisos? Valeria a máxima do comediante deputado: ´pior que está, não fica´?

Como Marina se comportará nos debates? Com qual nível de energia se conduzirá pelo Brasil? Qual será sua receptividade em relação às grandes empresas financiadoras de campanha? Que tipo de mensagem levará às cidades com menos de 50.000 de habitantes, onde seu desempenho é pior? Terá um posicionamento assertivo de oposição? Como rebaterá as inúmeras bordoadas que receberá daqui para frente, tanto de petistas, quanto de tucanos? Oferecerá a outra face? Terá capacidade de crescer mais, atraindo para si o ainda grande contingente de eleitores indecisos? Os atuais enigmas marineiros eram questões ausentes na última eleição, onde ela apenas marcava terreno, sem aspirações ambiciosas.

Para seus eleitores, as boas notícias são a manutenção do seu capital político, surpreendentemente intacto ao longo de quatro anos e a maior fragilidade de seus adversários atuais, fatos que lhe abrem espaço sonhar com a presidência da República. As más notícias são a maior complexidade da situação a ser enfrentada pela acreana, e a ausência de uma estrutura partidária que lhe suporte na mesma proporção da que desfrutam seus rivais oligopolistas (PT-PSDB).

A inexistência de telhado de vidro no que diz respeito ao comportamento ético e a afirmação de exclusão completa em relação às duas vias majoritárias são os grandes trunfos eleitorais marineiros. É como se ela declarasse, com firma em cartório: ´Sou honesta e não pertenço à mesma estirpe da turma que está aí´. Aliado a sua história de vida, tão ou mais espetacular que a do ´mitólogico´mentor de postes, está feito o caldo para torná-la extremamente competitiva. Convenhamos, deixa a desejar para uma terceira via programática. Mas essa é a realidade brasileira. Nossa crise de talentos e lideranças não está somente escancarada dentro dos campos de futebol.

Ideologias à parte, os enigmas marineiros proporcionarão aos brasileiros a eleição mais disputada desde 1989, e seu desfecho é uma incógnita, por mais que tucanos e petistas teimem em insistir que o duopólio será mantido. Há controvérsias…

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