Ao longo das últimas semanas, a expressão ‘embargo’ esteve entre as mais mencionadas em todas as mídias e os ministros do STF viveram seus dias de técnico de futebol, situação atípica em um país de memória curta e discussões efêmeras. Mas se olharmos a nossa história, teremos exemplos que nos levam a crer que ‘embargados estamos há séculos’.
Vejamos o significado preciso do adjetivo ‘embargado’ e do verbo ‘embargar’, direto do dicionário:
Embargado
adj.
1. Que está sob embargo.
2. Tolhido, impossibilitado (de fazer ou dizer).
embargado da fala: Gago.
embargado dos membros: Paralítico.
Embargar – Conjugar
(latim *imbracare, de braca, -ae, bragas, calções compridos)
v. tr.
1. Pôr embargos ou obstáculos a. = DIFICULTAR, ESTORVAR, IMPEDIR
2. Suspender uma ação (ex.: a câmara embargou a obra).
3. Confiscar.
4. Não deixar que se manifeste. = CONTER, REPRIMIR, TOLHER
No livro ‘1889’, Laurentino Gomes conta com excelência os detalhes que permearam a queda da Monarquia e a proclamação da República no Brasil, seguindo a receita dos ótimos livros que o precederam: 1808 e 1822. Em duas passagens importantes que tratam do tema da abolição da escravatura, é possível construir algumas analogias verdadeira e infelizes com o nosso país atual.
O Brasil foi a última nação do mundo a abolir a escravatura, marca vergonhosamente indelével nos registros históricos do planeta. No final do século XIX, a escravidão já era um fenômeno primordialmente rural: os escravos representavam 5% de um total de 14 milhões de habitantes, contra 40% de um total de 3.8 milhões no ano da independência. Eram 700 mil pessoas privadas de liberdade, proporcionalmente ao que seria hoje uma cidade do tamanho de São Paulo em relação ao Brasil. Os grandes fazendeiros de café do sudeste eram os maiores opositores à causa abolicionista e conseguiram manter por décadas o status escravagista da nossa sociedade, por conta de sua elevada influência sobre uma economia praticamente agrícola.
Desde a Independência, o movimento abolicionista ganhou força internamente e pressão externa. Em 1831 foi proibido oficialmente o tráfico escravagista, em uma das leis que originou a expressão ‘para inglês ver’, uma vez que não foi cumprida e nem intimidou o comércio de escravos, altamente lucrativo. Em meados da década de 1850, dada a frequente captura de navios negreiros pela frota britânica e a seu insistente assédio político pelo fim da escravidão, o tráfico foi efetivamente extinto do país; restava então aos escravocratas o ‘comércio interno’.
Na década seguinte, a Guerra do Paraguai reforçou ainda mais a causa abolicionista. Milhares de escravos lutaram lado a lado de homens brasileiros livres. A abolição era uma questão de tempo. Mas como estamos falando de Brasil, a causa embargou. Em 1871 foi promulgada a lei do ‘ventre livre’, uma das maiores falácias da nossa história. Com base nela, qualquer criança nascida após a data estaria obrigatoriamente livre da escravidão. Porém, ficaria sob os cuidados do seu ‘senhor’ até os 8 anos de idade, quando ele teria a opção de enviá-la ao governo em troca de uma indenização ou mantê-la sob sua guarda até os 21 anos, idade em que todos estariam automaticamente livres. Pouquíssimos fazendeiros optaram pela primeira alternativa: somente 58 casos registrados em quase duas décadas. Mantinham assim os nascidos libertos sob sua custódia, em situação de escravidão. Casos de fraude nas certidões de nascimento também ocorreram aos borbotões. Houvesse algum instituto demográfico medindo a natalidade da época, iria se surpreender com a quantidade inexplicável de nascimentos de escravos pouco antes da lei do ventre livre. Pura picaretagem. Soluções tabajaras para tornar uma lei inócua.
Apesar de não servir para absolutamente nada, a lei proporcionou aos legalistas de plantão argumentos sólidos para a manutenção do ‘status quo’, afinal de contas o fim da escravidão era uma questão de tempo. Dali a algumas décadas, ela seria extinta, sem que houvesse necessidade de uma ruptura nas estruturas sociais da época. Esse era o discurso daqueles que eram contrários à causa abolicionista e que de fato corroborou para ‘embargá-la’ por longos 17 anos, quando já não havia mais clima para a manutenção da escravidão, que foi definitivamente extinta pela Princesa regente Isabel em Maio de 1888.
Dezessete anos…um longo período, nos remete à atualidade de julgamentos daqueles que dispõem de recursos para protelar. Cento e quarenta anos nos separam no tempo, mas a cultura embargadora é a mesma, está no DNA tupiniquim.
Outra infeliz analogia diz respeito à causa em si. Havia no Brasil do fim do século milhares de intelectuais, políticos e outras autoridades partidários da abolição. Tratava-se de uma demanda bastante popular. Uma vez atingido o objetivo, ninguém se preocupou com a inserção social dos antigos escravos, e 700 mil pessoas foram lançadas ao ‘Deus dará’. Mesmo os abolicionistas mais ferrenhos se deram por satisfeitos com a assinatura da Lei Áurea, que segundo cronistas da época, foi responsável pela maior celebração popular da história brasileira até então. Muita festa para celebrar uma demanda há tempos reprimida, e depois? Alinhado ao tradicional foco brasileiro no curto prazo, cumprido o objetivo, o engajamento esvaiu-se (não lembra os tais 20 centavos?). A desigualdade social, já comum naquele tempo, recebia o adubo que iria fomentá-la pelo século seguinte. Não resta dúvida de que os 5% que na época compunham a população escrava em uma sociedade onde 80% das pessoas não sabiam ler geraram descendentes que hoje em sua maioria fazem parte do imenso bloco de 30% de analfabetos funcionais do Brasil contemporâneo. Embargados por mais de um século.
Essa cultura de concentrar esforços na superfície do problema permanece até hoje, com o celebrado bolsa família, que suporta 50 milhões de pessoas (ou 25% da população), sem que se tenha um plano claro para fazer com que seus beneficiários deixem de sê-lo em um futuro próximo, por se tornarem capazes de gerar renda com o próprio trabalho. Em 1888, seria ótimo que o Império, em seu crepúsculo, ou a nova República que se formaria no ano seguinte, tivessem um programa social como o bolsa família para ajudar os recém-libertos. Tivessem a mobilidade que os atuais beneficiários do programa apresentam, o benefício se propagaria através de seus descendentes até os dias atuais.
A analogia entre a abolição de 1888 e o bolsa família do século XXI se dá pela superficialidade da solução que ambos provém à sociedade. A abolição era uma causa justa e necessária, tal qual um programa de distribuição de renda para a miserável população brasileira dos dias de hoje. Mas ambas isoladamente funcionam como uma anestesia para um problema mais complexo e que mereceria planejamento e engajamento de longo prazo, cuja solução definitiva foi embargada. Seria o bolsa-família um descendente da mal resolvida questão social decorrente da escravidão?
Protelar, dificultar, impedir a solução definitiva de problemas é uma característica muito nossa. São inúmeros os exemplos que atravessam séculos de história, mudam a roupagem, mas permacem similares na essência. Uma mudança cultural que rompa com nossa tradição ‘embargadora’ só ocorrerá se a maioria da população se posicionar com firmeza em prol de uma sociedade mais prágmatica, que não se satisfaça apenas com indícios de que tudo vai melhorar. É indispensável ser muito mais vigilante e exigente em relação a tudo que nos cerca. Será que temos alguma chance? Ou embargaremos a esperança de um país melhor para as próximas gerações?
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Victor Loyola
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