A tempestade

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A tempestade tornava a perigosa pista escorregadia. O limpador de pára-brisa, em sua velocidade máxima, era incapaz de controlar a vazão de água sobre o vidro, que embaçado, dificultava a sua visão. A sinuosidade da estrada, aliada ao anoitecer, no momento em que a claridade confunde e os faróis pouco iluminam, convertiam aquela situação em uma aventura assustadora.

 

Decidira viajar de carro, pois adorava a sensação de liberdade que a estrada lhe proporcionava, tornando-o inacessível, pelo menos por poucas horas, e também por ser a única opção disponível naquele momento para um compromisso inadiável, localizado a doze horas de distância automobilística. A bem da verdade, não era a única, mas a ocasião se transformara em uma excelente desculpa para que exercesse seu ‘ hobby’. Se ‘ pegar estrada’ já lhe causava uma enorme satisfação, fazê-lo à noite era o nirvana, talvez por abrir o baú das doces recordações de infância, onde as viagens noturnas eram praxe. O que para a maioria das pessoas era um esforço desnecessário, para ele era um relaxamento. Após algumas horas ao volante, sentia-se surpreendentemente revigorado.

 

Gostava de deixar o vidro semi-aberto para experimentar o vento no rosto e o assobio em seu ouvido. Soltava a voz acompanhado de suas músicas preferidas no volume mais alto possível. Era o senhor da sua jornada. Sentia-se no controle absoluto da situação. Considerava-se um motorista experiente e qualificado, pois experimentara inúmeros pequenos percalços em dezenas de viagens realizadas ao longo dos anos, sempre superados. Já havia vencido nevoeiros, pneus furados, cavalos atravessados na estrada, tanque vazio, entre outros. Por conta disso, desenvolvera uma auto-confiança, confundida algumas vezes com arrogância. Não era. Tratava-se da consequência de fazer o que gostava e ter acumulado muita experiência com isso…

 

tempestade2Mas aquela tempestade noturna era novidade. Ela começou de mansinho, quase uma garoa, e gradualmente transformou-se em dilúvio. Ainda lhe restavam algumas horas pela frente, e elas seriam estendidas, já que a sua velocidade média reduzira-se pela metade. Em um primeiro momento, não atentou para o fato de que se deparava com uma encrenca. Custou a ‘cair a ficha’. Mas o tempo passava e o volume de água só aumentava.  Quando uma ‘aquaplanagem’ quase o jogou para fora da pista, finalmente concluiu que aquela era uma inédita situação de ‘crise’.

 

O tráfego noturno era intenso, principalmente o de caminhões, que via de regra desprezavam a presença dos automóveis, constituindo-se em um perigo adicional.  As incessantes gotas de chuva diluíam seu prazer na jornada, convertendo-o em um stress contínuo. Ao invés de relaxamento, a tensão. O tempo passava e a situação tornava-se muito incômoda. Sua vida por um fio a cada curva exigia concentração intensa. Vidros fechados, som desligado. Apenas um olhar atento no horizonte escuro e molhado e nos retrovisores que refletiam momentos passados de ‘quase-acidente’. Braços firmes no volante e câmbio e e pés conectados nos pedais de acelerador, freio e embreagem, constituíam-se em uma engrenagem única que não se permitia um erro. Não podia piorar.

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Podia. Inesperadamente, o limpador de pára-brisa partiu-se em sua base. A visibilidade, antes ruim, agora inexistia. Parou o carro no estreito acostamento para verificar o que ocorrera. Nos breves instantes em que esteve fora, encharcou-se. Ensopado, pensou em prosseguir, mas logo concluiu que era impossível. Também não lhe agradava ficar parado com o sinal de alerta, esperando o fim da tormenta. Estava no meio do nada e a posição do carro era um convite a acidentes. Decidiu voltar à estrada, dirigindo lentamente com a cabeça para fora do carro, a única alternativa que lhe permitia enxergar pouco do que estava à sua frente. No primeiro posto, iria parar. A essa altura, estava conformado em seguir viagem somente depois que passasse a tormenta.

 

Não tinha a menor ideia de quando o posto de salvamento chegaria. Estava em um lugar da estrada praticamente deserto, no meio do nada. Seriam alguns quilômetros de despespero. Limpador estragado, dilúvio na cara, seu carro já alagando, pois a chuva caía com a ajuda de um vento lateral, e uma visibilidade prejudicada. Seu coração batia acelerado e ele pressentia que a qualquer momento poderia ser o protagonista de um desastre. Lembrou de sua família e começou a rezar, pedindo para que tudo aquilo terminasse. Em pensamento, culpou-se por ter decidido viajar de carro. Mas como ele iria saber? Não controlava a tempestade e até ela começar, sua jornada estava ótima, conforme ele antecipara.

 

Mais alguns quilômetros e furou um pneu. ‘O destino está de brincadeira comigo’, pensou. Por vocação, gostava de dirigir, mas faltava-lhe o DNA para consertar coisas. Sua habilidade manual não era motivo de orgulho. Isso já acontecera outras vezes, mas sempre havia um bom samaritano por perto para dar uma mãozinha. Sob a tormenta, essa não seria uma possibilidade. A tempestade já durava algumas horas, e no fundo ele estava se acostumando. Encarou a troca de pneu como mais um desafio que aquela situação desconfortável lhe proporcionava. Já estava ensopado, não tinha nada a perder. Superaria mais essa. Levou no mínimo o triplo do tempo normal para executar a tarefa. Caminhões passavam ao largo e como ele esperava, ninguém parou para ajudar. Alguns davam sinais de luz, talvez indicando que um posto estava próximo. A essa altura, ele nem se incomodava. A tormenta havia se associado ao seu estado de espírito. ‘Essa merda não vai passar nunca’.

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Quando terminou de trocar os pneus, lembrou-se que aquele era um conserto inútil. O dilúvio persistia tão intenso quanto antes, e o limpador de pára-brisa estava quebrado. Bateu um desânimo profundo. ‘Se a tempestade diminuir um pouco, já me dou por satisfeito’. Não diminuía. Ele seguiu viagem com o único método possível para o momento, dirigindo insanamente com a cabeça para fora do carro, aguardando a chegada de um posto de salvação. Uma placa indicava que faltavam dez quilômetros para isso, o que significava pelo menos mais meia hora de via crúcis.

 

Naquele momento, agia como se estivesse em piloto automático. Não tinha mais esperanças de que a tempestade cederia. No olho do furacão, parecia eterna. Queria apenas chegar ao posto e parar o carro com segurança. Esperaria até o fim do dilúvio. Aquilo passou a ser a visão do paraíso. Mas antes de chegar lá, precisava encarar os dez quilômetros que lhe restavam.

 

Foi a meia hora mais longa de sua vida. Chegou a chorar, e as lágrimas misturavam-se à chuva. Mantinha-se focado para evitar qualquer contratempo. Naquele momento, queria somente chegar vivo ao posto. Chegou. Para sua decepção,  ele estava fechado. Para a sua alegria, havia espaço para estacionar, protegido contra acidentes. Receava pela sua segurança, pois o local não era dos mais ‘simpáticos’. ‘Só me falta ser assaltado aqui’. Por conta disso, não conseguiu relaxar. Esperou que a tormenta cedesse, encharcado e sem condições para colocar uma roupa seca,. A desgraçada não cedia. O posto de salvamento lhe proporcionou descanso, mas não acalmou a sua mente, que permanecia acelerada. Estava a salvo, mas tenso. Decidiu que se a chuva diminuísse somente um pouco, retornaria à estrada. Àquela altura, queria terminar a sua jornada, e faltavam-lhe ainda umas três horas, em condições metereológicas normais.

 

Como a tempestade seguia inacreditavelmente firme e com a adrenalina a mil, voltou a dirigir. Aquele não foi um posto de salvamento, serviu apenas para recompor as energias. O ideal seria encontrar outro, melhor e funcionando. Assim poderia se secar e comer alguma coisa. Estava exausto. Já não se incomodava com o dilúvio. Aprendeu a conviver com a situação de crise. Do fundo de sua alma encharcada, brotou-lhe a paciência. ‘Uma hora isso passa…não há de chover para sempre’. Já habituado a dirigir com a cabeça para fora do carro, consegui até imprimir um ritmo mais acelerado. Acostumara-se com a tempestade. ‘Pelo menos os faróis ainda estão funcionando’, pensou ironicamente, debochando da situação.

 

Pouco mais de uma hora depois de sua partida do posto mequetrefe, e ainda sob as mesmas condições metereológicas, encontrou outro aberto. Alívio. Estacionou, pegou sua mochila e dirigiu-se ao banheiro, um tanto sujo, fato que sequer o incomodava naquele momento. Colocou roupas secas e aprumou-se para comer algo. Sabia que seria uma gororoba qualquer, mas estava feliz por não sentir mais a chuva na cara. Feito isso, esperou em um banco. Olhava para ela com ares de vitorioso: ‘Logo você acaba e eu estarei aqui, seco. Você passará e eu seguirei’. E foi o que aconteceu.

 

Depois de muitas horas, a tempestade passou. Ele retornou à estrada. Seco. O limpador de pára-brisa quebrado já não fazia falta. Estava amanhecendo e uma sensação de alívio que jamais experimentara antes tomou conta de si, aliado a um extraordinário sentimento de alegria. Nunca estivera tão feliz por ver o céu límpido e o tempo firme.

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Parou o carro em um acostamento seguro. Deitou sobre o capô, de braços abertos. Respirou fundo e agradeceu pelo horizonte sem nuvens. A tormenta havia ficado para trás e naquele momento ele até a apreciava, sem saudades. Por conta dela, tornou-se um motorista ainda mais experiente.  ‘A tempestade só existe para que possamos valorizar ainda mais o céu azul que vem depois.’ E feliz, seguiu viagem…

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