A decadência ‘mestiça’ da política brasileira

O Brasil é um país mestiço, fruto da miscigenação de diversas culturas. Esse é um aspecto interessante do nosso DNA, que certamente nos diferencia da maioria dos povos do mundo. No âmbito da sociologia, a mistura deu origem a uma nação de múltiplas facetas, o que geralmente é visto de maneira positiva. Porém, infelizmente essa tendência de mestiçagem extrapolou as fronteiras da estrutura social e hoje está impregnada na política. Nesse aspecto, estamos falando de gente que muda de opinião de um dia para outro, abraça causas outrora rejeitadas, se alia com opositores da semana anterior, para ficar apenas no mais básico. Se a característica mestiça da nossa sociedade é filha da tolerância, na política, ela é filha da falta de vergonha na cara.

Foi-se o tempo em que era possível diferenciar ‘mocinhos e bandidos’ no panorama político brasileiro. No passado, essa atribuição dependia dos princípios de quem avaliava, mas seguramente havia um componente ideológico claro. É verdade que era um mundo mais simples e bipolar. No caso brasileiro, por muito tempo tivemos aqueles que lutavam pela democratização de um lado, e os que aceitavam o ‘status quo’ da ditadura do outro. O mundo ficou mais complexo, a ditadura é uma remota lembrança do passado, o Brasil venceu a inflação, as suas instituições se fortaleceram e hoje apresentam  uma solidez respeitável, mas do ponto de vista político, a impressão é de que regredimos. Radicalmente.

Quem se ausentasse do Brasil no início dos anos 90 e retornasse vinte anos depois (a partir desse ponto, iremos nos referir a essa pessoa como ‘o ausente’),  ficaria de queixo caído com as atuais alianças inovadoras no cenário nacional. Fernando Collor, que marcou época em 1989 com sua campanha intensamente agressiva contra José Sarney, seu antecessor que mal lhe passou a faixa presidencial, hoje é seu aliado. Ambos, outrora defenestrados pelo então puro Partido dos Trabalhadores, são parceiros da companheirada no Congresso. Aliás, quem viu o PT daqueles tempos se alinhar com a imprensa em favor da ética na política, ficaria boquiaberto com a sua transformação, completamente enfeitiçado pelas ‘benesses’ do poder, buscando golpear sorrateiramente a liberdade da imprensa que o critica e tão ou mais sujo que os seus antigos oponentes na questão da ética, sendo o principal protagonista do maior escandâlo de corrupção da história recente do país.

Esse mesmo ‘ausente’ se surpreenderia com o falecido ex-governador Orestes Quércia e ex-presidente Lula, desafetos do século passado,  trocando afagos no novo milênio e não acreditaria que os candidatos do PT e do PSDB à prefeitura de São Paulo disputam acirradamente o apoio de Paulo Maluf. Ficaria atônito ao perceber que Partidos ditos socialistas (e até mesmo comunistas) aceitam de bom grado apoio das legendas PR, PP ou similares, que nada mais são que expurgos dos antigos PDS, PFL, e outros Ps antes veementemente combatidos. A recíproca é verdadeira. Mas como diz o próprio Maluf, que de protagonista e comumente derrotado nas eleições para prefeito, tornou-se ‘noiva desejada’ pelos candidatos, antes rivais: ‘ Não há mais ideologia, o que há são minutos de TV’.

E se no começo dos anos 90, o bicheiro da moda era o Castor de Andrade, famoso também por ser o presidente do Bangu e da Escola de samba Mocidade de Padre Miguel, mas que não ditavas as regras em Brasília, hoje um outro bicheiro, Carlinhos Cachoeira, mostra ao Brasil que se devidamente munido de dinheiro, mesmo um contraventor pode circular livremente pelos corredores do poder, influenciando e obtendo favores de seus amigos congressistas, à medida que as torneiras da compensação material sejam abertas. Iluminado por todos os refletores de uma imprensa investigativa, o esquema do Cachoeira fez água, mas o ‘ausente’ da nossa reflexão ficaria atônito com o fato de que o advogado do contraventor é um ex-Ministro da Justiça do governo anterior, renomado criminalista que não hesita em jogar a reputação que lhe resta na lata do lixo por ‘modestos’ R$ 15 milhões. Na decadente política mestiça nacional, tudo tem um preço.

Nunca o termo ‘farinha do mesmo saco’ foi tão preciso. Ao designá-lo para definir nossos políticos, cometemos o erro da generalização, que afeta uma minoria e escancara a verdade sobre a maioria. Não existe mais uma ‘causa’. O objetivo é manter-se ou conquistar o poder. Para que? Perpetuar-se no poder. Com isso, é possível lotear o governo, distribuir cargos, favores, obras, enfim – todas as formas de benefício indireto que o fato de estar governando proporciona a quem desfruta desse ‘privilégio’. Para conquistar esse direito, vale absolutamente tudo, desde aliar-se a oponentes até negar os próprios princípios.

Ocorre que nossa representação política não foi imposta, e sim escolhida pelo voto. Apesar do modelo eleitoral injusto, onde Tiriricas são capazes de arrastar quatro ou cinco desconhecidos para a Câmara dos Deputados, com base na regra esdrúxula de votação proporcional na legenda, quem votou nos Tiriricas?

Infelizmente, somos omissos em relação ao assunto, e despreparados na hora de votar. Considerando o nível educacional brasileiro, não há dúvidas quanto à segunda afirmação. No vale-tudo da política nacional, a negação de valores e princípios para a formalização de alianças esdrúxulas, mas vitoriosas, tem um custo alto para sociedade. A má notícia é que permaneceremos assistindo a esse show de horrores por alguns anos, uma vez que a nossa classe política reflete o ‘gosto’ da população. A boa notícia é que a evolução do nível educacional da sociedade a torna gradualmente mais crítica e racional e mesmo ocorrendo a passos curtos, esse contexto nos permite emprestar a tirada de campanha de um grande congressista brasileiro: ‘Pior que está, não fica’. Mas bem que poderia melhorar mais rápido…!

2 Comments
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2 Comentários

  1. Paulo

    17 de junho de 2012 em 16:25

    É errado associar maucaratismo a mestiçagem e indica desconhecimento sobre a política racial mestiçofóbica do governo federal e que é apoiada por outros grupos da sociedade.

    A falta de caráter está na negação de nossa identidade mestiça e não na mestiçagem.

    1. Victor

      17 de junho de 2012 em 16:53

      Caro Paulo,
      Seguem as definições de mestiçagem, obtidas do dicionário:
      1. ato ou efeito de mestiçar
      2. cruzamento de raças ou de espécies diferentes
      3. cruzamento de mestiços
      4. (artes) cruzamento ou fusão de estilos diferentes
      Conforme eu mencionei no texto, no aspecto social, a mestiçagem brasileira é positiva.
      Na política, entretanto, valendo- se das definições 2 e 4 acima, a mestiçagem produz aberrações. O que vai dar um filhote de PT com o Paulo Maluf, por exemplo?
      Espero ter esclarecido. Abs,

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