Reflexões ‘covidianas’ X: ‘Quando o covid salva a sua vida’

“A primeira vez que li esta frase foi no Facebook, em uma propaganda da Johnnie Walker. Era por volta do ano de 2011 ou 2012 e desde então, ela me marcou.

            Nunca fui (e ainda não sou) uma pessoa muito religiosa. Fui batizado em igreja católica, mas o que eu acredito é em um ser superior, que pode ter o nome que você achar que se encaixa melhor: Deus, Jesus Cristo, Buda, Alá, Maomé… Para mim, o que importa mesmo é ter fé, amor, empatia e respeito ao próximo, independentemente de sua crença ou religião.

A fé é peça chave para que as pessoas acreditem e tenham esperança em alcançar seus objetivos. Acalma o coração e fornece a coragem necessária nos momentos difíceis. Já dizia o ditado, “a fé move montanhas”, e é esta força capaz de mover montanhas que realmente importa, independentemente do nome do seu Deus.

E posso dizer que a Fé, mais do que nunca, esteve presente comigo neste ano de 2020. E para vocês entenderem o porquê, irei contar um pouco da minha história.

Para quem não me conhece, sou o Renato. Paulistano, 36 anos, o filho mais velho de três irmãos. Sou formado em administração e desde dez/2005 trabalho no mercado financeiro.

A ansiedade sempre foi (e ainda é) um tema presente em minha vida. Não gosto de imprevistos e na minha cabeça é quase sempre possível se prevenir e se preparar para qualquer situação em nossas vidas, sejam assuntos financeiros, de saúde, relacionamentos…. Para mim, tudo é questão de controle e planejamento. Mas será que depois desse ano totalmente maluco, ainda continuarei pensando assim?

Em 2012 essa ansiedade atingiu seu nível máximo. Devido a um emprego cuja atividade não era a mais adequada pra mim, tive crise de hipertensão. No exame de mapa, minha pressão chegou a bater 18/15. E com apenas 28 anos na época, torne-me um hipertenso sob medicação. Procurei ajuda profissional, e a solução que encontrei foi mudar de atividade. Mudei de emprego e resolvi o problema de saúde, e o hábito de cuidar dela, fazendo check-ups anuais, permaneceu.

Vamos a 2020. No dia 30 de março, comecei a sentir um pouco de febre e cansaço. O primeiro pensamento que passou pela minha cabeça foi “Será que estou com Covid19?”. Conversei com minha namorada que é médica e está no último ano de residência em anestesiologia. Decidimos aguardar mais uns dias para ver como os sintomas progrediam, pelo receio de ser apenas uma gripe, que poderia se agravar se fosse até o hospital, sob o risco de contrair Covid19 no local.

Os dias passaram e os sintomas persistiam. Até que no dia 3 de abril, sexta feira, ela me orientou a ir até o pronto socorro. Fui ao Hospital Albert Einstein, chegando por volta das 20hrs. O hospital estava totalmente vazio e assim e fui prontamente atendido. Retirei sangue para as análises, coletaram material para o exame de RT-PCR e na sequência fui orientado a realizar uma tomografia dos pulmões.

Aguardei cerca de 2:30 hs até os resultados dos exames. No dia, apenas o de sangue e a tomografia ficaram prontos. Com neles e na tomografia apontando que cerca de 30% dos pulmões estavam comprometidos, os médicos concluíram que provavelmente eu estava com Covid. Recebi uma série de recomendações sobre isolamento e tratamento da doença, com a recomendação de que retornasse imediatamente ao hospital caso meu quadro se agravasse. Fui orientado a tomar Levofloxacina 750mg durante 7 dias.

Cheguei em casa e liguei pra minha namorada (que mora no interior de São Paulo) para contar a “novidade” e também para alertá-la, pois estivemos juntos alguns dias antes. Avisei também a minha mãe, que, como toda mãe, ficou muito preocupada.

No dia seguinte, ao acordar, a primeira coisa que fiz foi entrar no site do Einstein e ver se o resultado estava disponível: RT-PCR positivo. Era oficial, estava com Covid.

Mandei mensagem para minha namorada para contar a confirmação do exame, e ela me pediu para mandar os resultados. Enviei o arquivo completo: sangue, tomografia, RT-PCR… e a primeira mensagem que ela me mandou após revisá-lo foi:

Ela: “Arteromatose coronariana, eita…”

Eu: “O que é isso?”

Ela: “Gordura nas artérias do coração.. que entope e causa infarto”

No laudo da tomografia do pulmão, foi diagnosticado que eu possuía esta doença chamada arteromatose e que minhas coronárias do coração estavam com obstrução. No dia em que fui ao hospital, o pneumologista que me atendeu estava de retaguarda, cuidando dos casos remotamente. Ele não possuía os meus exames em mãos e me orientou através do relato da médica do pronto socorro. Ninguém do hospital se atentou ao resultado do laudo. Foi minha namorada que observou este detalhe chamou a minha atenção. Não culpo a equipe médica, pois o foco naquele momento era a Covid.

Os dias que se passaram após a constatação da Covid foram complicados. A doença, para mim, foi a pior gripe que já tive na vida. Muito cansaço, falta de ar, febre e falta de disposição para tudo. Os 4 primeiros dias foram terríveis. Não havia uma posição ideal para dormir, pois se ficasse totalmente deitado, tossia demais. Houve uma noite em que eu dormi sentado, literalmente. Houve dias também em que eu não consegui sair da cama. A partir do quinto dia é que o remédio começou a fazer efeito e passei a melhorar. Ao final do sétimo dia, já me sentia bem.

No dia 13 de abril, retornei ao pneumologista. Ele me analisou clinicamente e confirmou que estava curado. A sensação de alívio foi muito boa. Ao final da consulta, comentei com ele sobre o que a minha namorada havia observado no laudo da tomografia. Ele então abriu e meus exames e viu a observação sobre a arteromatose. Sua reação também foi de espanto e ele prescreveu uma angiotomografia das coronárias (exame com contraste detalhado das artérias do coração). Recomendou que não fizesse nenhuma atividade física e procurasse minha cardiologista o quanto antes.

Saí da consulta, feliz pela cura da Covid, mas preocupado com “essa tal” de arteromatose. Mandei mensagem para minha namorada, feliz pela cura da Covid. E a primeira coisa que ela me perguntou foi se eu já havia marcado o cardiologista…..hahaha.

No dia 20 de abril fiz a angiotomografia, e resultado saiu no dia 22. Eu o enviei para a minha antiga cardiologista, que não me retornou e até hoje. Apreensivo com o resultado, liguei para o pneumologista e perguntei se ele não tinha algum colega cardiologista para me indicar. Felizmente, esse cardiologista divide o consultório com ele e já sabia de todo o meu caso.

Agendei então a consulta com o cardiologista no dia 23 de abril. E conforme o esperado, o diagnóstico não era dos melhores. Segundo o exame, eu estava com 50% a 70% de restrição de circulação de sangue em duas artérias do coração. O médico se espantou e perguntou se eu nunca havia sentido nada. Eu disse que não, que até sentia umas pontadas no peito de vez em quando, mas que para mim eram gases. Ele me perguntou se eu praticava atividades físicas e eu disse que sim, frequentava a academia cerca de 3x por semana… jogava baseball a cada 15 dias e também gostava de pedalar nos finais de semana,  de 2 a 3hrs, entre 40 e 50km! Devido a gravidade da situação, foi agendado um cateterismo de urgência para o dia seguinte.

No dia 24 de abril e eu retorno mais uma vez ao Einstein (diga-se de passagem, o local que eu mais visitei desde o início da pandemia). Meu cateterismo estava agendado para as 9hs da manhã. Conforme o médico havia me explicado no dia anterior, caso o cateterismo constatasse que o exame de imagem estava correto, eu teria de colocar de 2 a 3 stents no coração. Caso o exame de imagem estivesse superestimado, nada seria feito e eu teria de tratar a doença através de medicamentos.

Por volta das 11hs da manhã eu acordei da anestesia e a primeira pergunta que eu fiz foi se tudo já tinha acabado e se eu já estava curado. Os médicos da cirurgia me responderam que o procedimento daquele dia havia terminado, mas que eu teria de voltar no dia seguinte. O caso era mais complicado do que eles imaginavam e eles optaram por não fazer nada naquele dia. Estavam analisando se eu faria uma cirurgia de mamária/ponte de safena ou se continuariam na estratégia com os stents. Optaram pelos últimos devido à minha idade e caso fosse necessária uma cirurgia no futuro, eu teria as mamárias preservadas. Seria necessário colocar 6 stents no total (e não 3) e um deles seria mais complexo, pois possuía o formato em Y. Para o procedimento eles teriam de formar uma equipe médica maior e por isso foi marcado para o dia seguinte.

Lá estava eu no dia 25, para mais uma cirurgia, que durou cerca de 4 horas. Acordei perguntando se já tinha acabado tudo. Novamente, escuto a resposta de que naquele dia, já havia terminado o procedimento. Mas que ficaram faltando colocar 2 stents e pelo tempo prolongado, optaram por continuar a intervenção na segunda-feira.

Enfim no dia 27 coloquei os últimos 2 stents. No dia seguite, recebi alta do hospital e pude retornar para casa. No momento da minha alta, meu cardiologista foi me visitar, e me passou uma série de recomendações. Disse-me que estava curado, mas que o acompanhamento agora seria para o resto da vida. E que se não tivesse operado, seria um candidato seríssimo a um infarto fulminante ainda este ano.

Refleti muito nos dias que seguiram. Eu, que sempre fui uma pessoa organizada, que gosta de se prevenir e se preparar para tudo, levei um choque. Desde a minha primeira crise de hipertensão, monitoro minha saúde. Me intrigou saber que eu tinha uma doença tão grave no coração e que os exames de check-up nunca haviam detectado nada. O problema é que uma doença nas artérias, não é detectada pelos exames comuns do checkup (eletrocardiograma e ecodoppler), somente por um exame de imagem mais detalhado (como uma tomografia).

E a conclusão que eu cheguei, depois desse susto, é a de que não adianta se prevenir, se preparar, se programar…. quando as coisas precisam acontecer, elas vão acontecer de uma maneira ou de outra. Por este motivo é que a fé, que eu citei lá no início, é tão importante. Existem momentos em nossa vida onde planejamentos, prevenções, etc não adiantarão…precisamos da fé de que coisas boas estão guardadas pra gente e que tudo acontece por um motivo.

O ano de 2020 veio para mostrar isso não só pra mim, mas para toda a humanidade… precisamos ter mais fé e compaixão um com os outros. Acreditar que nada acontece por acaso e que devemos estar preparados para tudo. Não adianta temos os melhores controles e melhores planejamentos, pois imprevistos e surpresas, boas e ruins, acontecem. Para mim, essa é grande lição desse ano.

Graças a Deus eu peguei a Covid e felizmente não a transmiti para mais ninguém. Se não fosse por ela, não teria descoberto a doença no coração. O pneumologista que atendeu meu caso de Covid no Einstein, divide o consultório justamente com um cardiologista. Consegui agendar as consultas e fui operado em um dos melhores hospitais do Brasil. Se eu não acreditar que existe um papai do céu olhando por mim ou que pelo menos em 2020 ainda não chegou a minha hora, não sei mais em que acreditar… coincidências? Destino? Não sei…

Ah, e se você ainda tem dúvida de que nada acontece por acaso. Lembram da minha namorada? Pois bem, quando eu a conheci em 2010, ela era médica veterinária. Ano passado, a reencontrei no casamento do meu melhor amigo (foi ele quem nos apresentou em 2010) e agora ela é médica. Nesse intervalo em que ficamos sem nos encontrar, ela foi cursar a faculdade de medicina em Ribeirão Preto. E foi justamente ela quem me alertou sobre minha doença… sabe-se lá se isso não teria passado batido se não fosse ela… e eu não estaria aqui hoje escrevendo essa história!

E a frase lá de 2011 nunca fez tanto sentido hoje em dia:

“A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás; mas só pode ser vivida olhando-se para frente.” – Soren Kierkgaard

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O relato acima foi compartilhado por um amigo, que preferiu não ser ‘marcado’. Ele nos traz o fato de que muitas vezes as dificuldades impostas pelo destino estão na verdade abrindo portas para um futuro melhor.

Dificilmente haverá no mundo gente que não tenha sido impactada de alguma maneira pela covid. Algumas centenas de milhares perderam a vida e um contingente ainda maior viu gente próxima partir. No melhor dos casos, tivemos que readaptar nossos cotidianos, confinados ou com uma fração da interação social de antes, enfrentar as inquietudes no trabalho, seja pela perda de renda ou emprego, ou pelo medo de não sobreviver, no caso de empreendedores. A doença nos trouxe o convívio da incerteza em escala exponencial, e ela muitas vezes é mais nociva que a realidade.  

Ninguém passará ileso pelo covid-19 ou suas ‘derivações’. Se vamos nos tornar pessoas melhores com isso, é outra história. Mas que cada um de nós recebeu ao longo desses 5 meses matéria prima para muita reflexão, não resta dúvida. A história do Renato é impactante, pois de forma inusitada, o maldito vírus acabou por lhe salvar a vida. Individualmente, foi um copo meio cheio. A pior gripe que ele já teve, como ele mesmo relatou, acabou sendo um pedágio a ser pago para desfrutar a plenitude do que está por vir.

De repente, se procurarmos com atenção, encontraremos também qual é o nosso ‘pedágio’ e como podemos fazer dessa experiência única, algo aproveitável no futuro.

2 Comments
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2 Comentários

  1. Ricardo Guedes

    9 de agosto de 2020 em 22:33

    Victor: eu agradeço muito você trazer este relato e reflexão. Os pedágios tem ocorrido em nossas vidas. Eu mesmo moro em uma cidade e meus pais em outra e a dificuldade/coragem de vê-los é desfeita pelo medo do contágio. Todos estamos vivendo alguma perda. Mas vamos colocar as coisas no lugar. Um dia a menos para o fim da crise.

  2. sonia pedrosa

    10 de agosto de 2020 em 09:19

    Realmente, Victor, muitas vezes, não entendemos por que está acontecendo determinada coisa com a gente. Só depois de algum tempo é que as coisas vão fazer sentido. E como a minha mãe costumava dizer, não há um mal que não traga um bem. Nada é 100% bom ou mau.
    O que a gente precisa é ter fé para continuar.
    Grande abraço.

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