Reflexões covidianas VI – Mais empatia, por favor

A covid-19 tem mostrado que seus mistérios são muito maiores que nossas certezas. A doença não cansa de humilhar os que tentam prever sua trajetória, e mesmo assim observamos reações completamente extremadas quando se trata de opinar sobre sua progressão ou o combate à pandemia.

Mesmo diante de um cenário de máxima incerteza e informações limitadas, muita gente deixa que suas convicções tenham o peso de lei. Encerram-se em sua bolha dogmática e simplesmente ignoram qualquer ponto de vista que não se assemelhe ao seu. Tempos de zero empatia.

Há o grupo do ‘fique em casa a qualquer custo’. Normalmente atacam a suposta indisciplina brasileira em seguir os ritos da quarentena, na visão dele seria a população a própria culpada por sua agonia ao romper o isolamento. Rechaçam com veemência qualquer tentativa diferente dele e enxergam na Suécia um exemplo desastroso. Parece esquecer que o confinamento não elimina o vírus, apenas achata a curva e provê tempo para que o sistema de saúde não colapse, exatamente o que aconteceu no Brasil, cuja curva foi notadamente achatada em relação aos países do hemisfério Norte, na maior parte de nossas localidades (com algumas exceções).

Nesse sentido, o resultado esperado foi atingido, mas não para esse grupo, que não se cansa de apontar o dedo para a população ‘desleixada’. De pouco adianta argumentar que para boa parte dos brasileiros a moradia é apenas um dormitório, inadequada por condições de higiene e espaço para receber todos os seus residentes em uma temporada de reclusão. Como podem cobrar desse pessoal que fique em casa e recriminá-los por não fazê-lo? É muita falta de empatia.

Em tese, quando o vírus quebra a barreira doméstica, ele rapidamente se dissemina entre todos os moradores do lugar, ficar em casa sequer é uma solução 100% segura. Cuidados com higiene e regras de distanciamento social são mais importantes. Quando se recomenda o confinamento, em teoria é para facilitar ambas as práticas, mas é perfeitamente possível alguém sair de casa e não se contaminar. Então, a conversa deveria ser: fique em casa, se conseguir. E se não for possível, tome todos os cuidados.

No Uruguai não houve confinamento obrigatório, foi voluntário e com adesão massiva da população. É um dos casos de sucesso no combate à pandemia na América do Sul. Aqui, lá se vão três meses nessa luta, muitos lugares acabaram se confinando antes do tempo e estamos atingindo o limiar da resistência. Para agravar a situação, nossa curva achatada com pico no infinito não cede facilmente e a liberação da mobilidade, praticamente inevitável, se dá em um momento ainda de alta na quantidade de óbitos. Se ficar em casa não é mais a solução salvadora, o foco deveria ser na manutenção de todos os cuidados preventivos ao sair da toca. A turma do ‘fique em casa a qualquer custo’, bem acomodada e de ‘home office’ segue esperando o impossível, sem ‘vestir os sapatos’ de quem não pode acompanhá-la.

Ouve-se muitos exemplos pontuais ilustrando desrespeito ao confinamento aqui e acolá. O velho ‘ouvi dizer’. Nessa linha, eu posso afirmar que o prédio onde trabalho, uma torre com 30 andares, esteve às moscas nos últimos três meses. Um microcosmo do universo corporativo brasileiro que ficou em casa. Não entendo que seja pouco relevante. Foi uma parada radical, mesmo que não tenha sido tão rigorosa quanto na Europa.

No outro extremo, temos os negacionistas. Aqueles para quem os impactos do vírus estão super dimensionados e que de alguma maneira relativizam sua severidade. Incrivelmente, não adianta argumentar com os números de óbitos totais, que praticamente vão dobrar no mês de Maio nos Estados mais afetados ou terão um incremento expressivo. E por qual outra razão, além da pandemia, experimentaríamos esse tipo de situação? Também não adianta mostrar o quadro dos sistemas hospitalares com situação crescente de internações, no limiar do colapso, isso parece não sensibilizar os corações daqueles que consideram que o vírus é um pouco mais que uma ‘gripezinha’.

Para muitos desse grupo, o confinamento foi um erro colossal e deveríamos ter seguido o modelo sueco, e o argumento de que a nossa Suécia foi o Amazonas, que já está ultrapassando a assombrosa marca de 600 óbitos/MM de habitantes, equivale a pregar no deserto. Não há colapso na saúde que mude suas convicções.

Ocorre que o ‘libera geral’ seguido de um colapso no sistema implica em ‘confinamento’ estrito, isso é óbvio. Não há nenhum gestor público racional na face da Terra que na iminência de ter todos os hospitais abarrotados e sem vagas insistiria na tese do ‘deixa a vida me levar’. Qualquer ação governamental leva em consideração o fluxo de novas internações, a passagem para as UTIs e a capacidade em atender essa demanda. Portanto, independentemente da avaliação de quem relativiza a doença, fluxo de doentes aumentando em hospitais cheios cedo ou tarde implicará em maiores restrições de mobilidade. Não entender essa situação e criticá-la é uma falta de empatia tão grande quanto àquela que ignora que há pessoas que não conseguem ficar em casa.

São tempos difíceis. Recebemos o bombardeio de notícias com viés negativo, pois não é de hoje que desgraça gera audiência. As redes socias ajudam a polarizar qualquer assunto, muitos usuários flertam com a beligerância e não raro são disseminadas teorias conspiratórias sem nenhum sentido. Manter-se no prumo, sem tomar partido dos grupos pouco empáticos, é um desafio diário.

A receita para manutenção da sanidade é ter a humildade de reconhecer que ninguém sabe muita coisa sobre esse vírus, nem mesmo as maiores autoridades no assunto, portanto ‘errar’ é normal, tanto por parte de quem interpreta as informações desencontradas que recebe, quanto daqueles que estão tomando decisões com base no andamento da pandemia. Nesse momento, não existem verdades absolutas, a não ser que o hábito de lavar as mãos, usar máscara em locais públicos e evitar aglomerações previnem a propagação da doença.

Resta-nos acompanhar os números com o detalhamento que a situação merece, sem nos deixar levar pelo pânico, já que nenhum mal dura para sempre. O exemplo da Europa é revigorante, retomando a vida aos poucos e sem um sinal de segunda onda devastadora, conforme se pregava inicialmente. Logo também vivenciaremos essa fase e perceberemos que a falta de empatia não ajudou em nada. Um dia a menos para o final da crise.

4 Comments
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4 Comentários

  1. Marcio Maruta

    16 de junho de 2020 em 17:29

    Victor, boa tarde. Há pouco tempo, passei a acompanhar seus posts no Linked In relativos ao Covid-19. No emaranhado de informações que encontramos, muitos com vieses político-partidários, identifiquei-me com as que você posta, sempre com análises pertinentes e baseadas em dados. Segue sendo minha referência para tentar entender um pouco o que vem acontecendo… fico grato com sua disponibilidade de mastigar essa enorme quantidade de informações e compartilhar com todos.
    Um grande abraço!

  2. Edu

    16 de junho de 2020 em 18:17

    Muito boa reflexão Victor. I

  3. Mair Souza

    16 de junho de 2020 em 22:21

    Mais uma demonstração de sensatez!
    Grato por sua ajuda, a tantos, nessa fase maluca da vida de todos,

  4. Jose Carlos Miranda ferreira

    21 de junho de 2020 em 18:46

    Empatia é tudo neste mundo louco que estamos vivendo. Ser empático faz toda a diferença. Excelente artigo Victor !!

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