O que o dinheiro não compra

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Será que vivemos em um mundo onde tudo está à venda?
 A lógica de mercado é capaz de corromper qualquer atividade desprovida de ‘DNA’ mercantil? Ela deve prevalecer sobre a moral?
Em seu último livro ( O que o dinheiro não compra) Michael J. Sandel, célebre professor de filosofia da conceituada Universidade de Harvard, não traz respostas a essas perguntas, mas provoca o leitor a refletir sobre situações cotidianas onde a lógica do mercado se contrapõe à moral. Em quais circunstâncias devemos tolerar que a primeira prevaleça?
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Essa discussão ilumina todos os exemplos do livro, organizado em cinco grandes capítulos: Furando a fila, Incentivos, Como o mercado descarta a moral,  Mercados da vida e da morte e Direitos de nome. A leitura flui em uma linguagem surpreendentemente acessível para um filósofo, e suas 230 páginas são facilmente consumidas em algumas horas. Não é à toa que as aulas do autor estão entre as mais concorridas de Harvard.
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Destaco a seguir dois exemplos que me chamaram muito atenção; o primeiro deles relacionado aos efeitos colaterais indesejados quando incentivos de mercado contaminam tudo que não obedecer à sua lógica. Com o objetivo de diminuir os atrasos dos pais para buscarem seus filhos, creches israelenses estipularam uma multa para os mesmos. O resultado foi intrigante. Ao invés de diminuir, a incidência de atrasos aumentou. A implantação do pagamento em dinheiro alterou as regras na relação entre os pais e a creche. Se antes, os primeiros sentiam-se culpados por obrigarem os professores a esperar um tempo além do normal, e por conta disso esforçavam-se ao máximo para evitar essa situação, a introdução da multa fez com que os pais a encarassem como um serviço que a creche prestava em caso de atraso. A interpretação foi de que a multa era na verdade uma taxa que remuneraria os professores por uma atividade que anteriormente era um estorvo.
O autor destaca a fronteira tênue entre multa e taxa; enquanto a primeira denota uma desaprovação moral, a última é simplesmente um preço. No caso das creches israelenses, a multa se transformou em taxa, e o tiro saiu pela culatra.
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Outro exemplo extremamente interessante vem da Suíça, que por muito tempo buscou um local adequado para depositar seu lixo nuclear. Um possível sítio foi encontrado nas proximidades de uma pequena aldeia de 2.000 habitantes (Wolfenchiessen). Em 1993, foi realizada uma consulta junto aos moradores, perguntando se votariam a favor da instalação do depósito. Apesar de indesejável, 51% dos habitantes se declararam dispostos a aceitá-lo. O senso de dever cívico supostamente prevaleceu sobre a preocupação com a segurança individual. Economistas criaram uma segunda consulta, na qual além de perguntar sobre a aceitação, ofereciam uma indenização anual em dinheiro a cada morador. Surpreendentemente, a aprovação caiu pela metade. Somente 25% dos habitantes endossaram o depósito nessas condições. Por que maior número de pessoas estava disposto a aceitar lixo nuclear de graça do que mediante pagamento? Em tese, a oferta de um incentivo financeiro deveria aumentar a disposição das pessoas em aceitar um ônus. Em tese, pois ‘ o efeito do preço pode ser confundido por considerações de ordem moral, entre elas o compromisso com o bem comum’. A maioria dos habitantes que rejeitou a proposta monetária (83%) justificaram sua nova posição com a afirmação de que não aceitavam suborno.
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Situações banais como guardar ou comprar lugar na fila, vender direitos para caça de animais em extinção dentro de uma cota, o mercado de crédito de carbono, incentivos financeiros para que estudantes leiam mais, o mercado de seguros e suas variações, a prática de exploração de nomes, entre outros assuntos, são abordados com maestria provocativa pelo autor. Todos tem em comum o fato de que atrás da aparente normalidade, há uma batalha silenciosa sendo travada entre a lógica do mercado e a moral.
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Livros como esse deviam ser best-sellers mundiais e estar na mesinha de cabeceira de todos aqueles que se preocupam com os excessos mercantilistas da sociedade moderna. Nem tudo tem um preço, e a lógica racional do mercado não pode sobrepujar valores morais ‘imprecificáveis’. Recomendo a leitura, e pretendo encontrar tempo para digerir ‘ Justiça’ , obra prévia do mesmo autor que o alçou às glórias da fama. Vale a dica.
4 Comments
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4 Comentários

  1. Raul

    17 de fevereiro de 2013 em 10:46

    Victor, o mercado e ultimamente as pessoas descartam a moral quando o risco é assimétrico. Se der certo, o agente leva o lucro, se der errado, alguem (que nao ele) paga a conta.

    Esse fenomeno se manifesta diariamente por exemplo quando o agente é protegido por monopólio ou tem algum direito ou situação que o protege das consequencias, como por exemplo, um emprego publico vitalicio ou um sistema legal/judiciario demorado. No caso do mercado aberto, é a liberdade de jogar com o dinheiro dos outros e ganhar uma comissão sem o risco de perder um pouco do próprio capital.

    Quanto a furar a fila, fica minha experiencia de fim de semana. Chego no aeroporto de Santos Dumond, fim de carnaval, fila enorme tanto para checkin e despacho. Vejo uma fila com uma só pessoa e vou la´. Era “Antecipação”. Fui oferecido uma antecipação do meu voo, de graça, e com isso eu entraria no embarque preferencial ja que eu ficaria no limite de tempo para embarcar. O que fiz? Aceitei. E em 15 minutos, fiz meu checkin, despachei minha bagagem e em 40mins estava voando. Furei a fila? Nao. O que fiz foi achar uma arbitragem. Agora que escrevi isso aqui, da próxima vez a fila da Antecipação possivelmente vai estar maior, e logo, vai ficar tao longa como as outras. Assim, minha capacidade de “furar a fila” seria eliminada com o tempo.

    Em termos da experiência Suiça, por ter morado lá, tenho outra explicação. Existe um nivel de confiança do publico no governo, logo se lá alguem aceita um risco de sentar perto de material nuclear, ele sabe intrinsicamente que os riscos estao mitigados. Se há uma compensação em dinheiro, naturalmente os Suiços, que sabem que não há nada de graça nesse mundo (diferentemente dos Brasileiros), saberiam que o governo estava tentanto pagar por algo que não foi definido (um risco desconhecido) que possivelmente não pode ser precificado. Novamente, é o mercado informado tomando as decisões: nao comprar algo que nao conehce.

    O exemplo da creche é outro que coloca o preço (e valor) em um risco. Tenho certeza que se o preço da multa fosse 1 mensalidade ou expulsão (exemplo extremo), os pais seriam mais cuidadosos! o problema é que a multa era provavelmente baixa em comparação com o rendimento dos pais.

    Dinheiro nao compra tudo, mas acredito quando a relação não é sentimental (marido-mulher, filho-pais) etc, dinheiro de alguma forma vai ser o fiel da balança.

    Anyways, só comentarios randomicos frutos de uma bucolica manha de domingo.

    Abs

    Raul

    1. Raul

      17 de fevereiro de 2013 em 10:50

      Alias, faltou minha conclusao do evento da fila e da Suiça. Meu ponto é que em um mercado livre (sem monopolios, proteçoes e players informados), as chances de alguem tirar vantagem são minimizadas.

      Abs!

  2. Marcia Catherine Wright

    8 de novembro de 2015 em 13:34

    Questões como essa VH, passam pela noção de sucesso, algo que consta no “wish list” de qualquer ser humano. Se valorizamos alguém (na forma de admiração ou idolatria) pelo que amealha e “ostenta” a resposta à pergunta inicial acaba sendo “sim”.

    Mais vale a embalagem do que o contéudo. Curiosamente, perfumes exclusivos de altíssimo luxo, têm ambos.
    Repare como o poder de “valorizar” algo é tremendo. Somos nós que damos valor a algo, a alguém.

    Culturas como as que usou nos 2 exemplos são notórias por valorizar mais o coletivo em detrimento do indivualismo por terem essa noção mais forte (talvez por conta das guerras) de legado pra gerações futuras. Nações “recentes” como a nossa não são como o Velho Continente, nem como os países asiáticos, por exemplo. Te passo via email um excelente relatório publicado por uma colega qdo Lead Partner de RH da PwC que apontava o acentuar dessa dictomia nos chamados mundos azul, verde e laranja até 2020. Great food for thought.

    Qto ao aspecto que menciona aqui, comento: acrescente o fator “web” ao forjar e disseminar de valores e portanto de comportamentos morais, éticos, etc. Exemplo:

    Essa semana uma jovem “música” brasileira ganhou um premio internacional por em menos de 3 horas angariar 1 milhão de seguidores de seu novo lançamento “musical”. Em questão de dias, nada menos do que 20 milhões. Veja quantos têm os top 10 “web celebrities” (e quem são).

    Já que vivemos em regime democrático, conteúdo a parte (e espero que em alinhamento ao que aponta no excelente post) fica a constatação de que o ambiente da web também favorece – em igual escala “bombástica” – a possibilidade de comprar lotes, centenas e milhares de seguidores “fake”.

    Assim sendo, além da questão “moral” da existencia de pessoas que compram seguidores e de pessoas que se vendem em troca de dinheiro como tal, temos a porção insana de, como seres humanos “carneirões” que somos (já viu como se comporta um rebanho desses animais tapados?) sermos seguidores cegos de modismos, curiosos por natureza “humana” que somos, incorrendo com facilidade no engano, no pular do precipício!

    Isto é, compram o primeiro milhão, ou milhar de seguidores (e não estou me referindo ao caso dessa artista em particular, pls!) porque esse fato é o que atrai os demais. Pto.

    So, penso que em tempos de internet, o alerta que faz merece o dobro da atenção normal. E aí o que resta é lembrarmos que antes da questão moral (que é individual ou pelo menos reflexo de culturas localizadas e senso próprio de certo/errado) vem algo que é comum a todos: o aspecto racional. A lógica pura e simples do questionar antes de julgar, decidir e agir.

    Em tempos em que tantos dizem num ter tempo, talvez esse seja o melhor investimento a fazer com o tempo (24hs) que todos igualmente dispomos. Afinal, pensar antes de agir custa “apenas” tempo algo que Cronos não vende!

    Tks pelo alerta. Good job.

  3. Marcos Eduardo

    8 de novembro de 2015 em 13:40

    Há certa de uns 16 anos, participei de um curso feito pelo IREM de Chicago que, para conclusão, a nota maior estava no compromisso em assumir um compromisso de ser ético.
    De lá pra cá, a ética parece ser mais coisa do Cortela (na pratica), isso talvez se comprova quando avaliamos a situação política do país em que vivemos, e se agrava quando ainda vemos um percentual de pessoas que entendem que as pessoas envolvidas merecem aprovação.
    Há cerca de 50 dias, novamente participei de uma convenção internacional e, dentre as palestras, uma de um outro instituto americano pregava que, o diferencial das empresas poderia estar em assumir que são éticas, o que causou surpresa por parecer algo tão intangível quando se pensa no valor das coisas.
    Enfim, parece um movimento ainda pequeno ou uma viagem ao desconhecido quando olhamos o título desse livro e vemos o exemplo dos Israelitas, em que eles até esqueceram algo que o Deus deles disse:o dinheiro é a raiz de todos os males; só não esperava e talvez aí deva começar ou esperar a mudança é de que, buscar o filho na escola deveria ter um valor maior do que a taxa.

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