E o ‘posto Ipiranga’, tem combustível?

Paulo Guedes caiu de pára quedas em Brasília. Nascido e criado na iniciativa privada, carreira de sucesso, financeiramente mais que resolvido, formação acadêmica em Chicago, zero de experiência política anterior ou em cargos públicos. Por acaso tornou-se conselheiro econômico de Bolsonaro na campanha eleitoral, a quem serviu para dar uma ‘roupagem’ liberal à candidatura, situação inimaginável pelo histórico do então deputado, que referia-se a ele de maneira bem humorada como seu ‘posto Ipiranga’ sempre que lhe perguntavam sobre economia, em alusão ao famoso comercial.

Alçado à condição de super ministro da Economia, acumulou diversas funções e trouxe para si uma imensa responsabilidade na largada do mandato. Montou uma equipe de profissionais competentes e criou grandes expectativas em relação ao seu desempenho, infladas por uma retórica algumas vezes destemperadas politicamente, mas que traziam verdades poucas vezes ditas, junto à algumas bobagens para as quais tinha sempre que ligar o ‘veja bem’ no dia seguinte. E assim o posto Ipiranga abastecia de esperanças um vasto contingente de pessoas de Norte a Sul do país.

Pois bem, passamos o primeiro ano e reforma da Previdência à parte, em conjunto com algumas outras ações como a lei da liberdade econômica e outros avanços menores, andamos de lado. O PIB cresceu tanto quanto nos dois anos do governo Temer. Pouco para quem ‘cacarejou’ grandes conquistas desde antes de assumir.

Veio a pandemia, o pandemônio global, cuja gravidade a equipe econômica demorou a assimilar, a queda expressiva no PIB e a necessidade de desembolsar o que não se tinha em auxílios emergenciais, tanto para indivíduos, quanto para empresas. O ano fiscal estava arruinado, sem que houvesse um culpado além do vírus que veio da China, a tal ponto que um dos principais assessores do Guedes já declarou em entrevistas que superávit primário somente em 2027, se tudo der certo. Trata-se de situação muito aflitiva para quem está no comando da embarcação e não tem como tirar a água que entrou no barco.

Thomas Sowell uma vez escreveu que a ‘a primeira lição de economia é a escassez: nunca há algo suficiente para satisfazer plenamente todos os que a desejam e a primeira lição da política é desconsiderar a primeira lição da economia’. Em seu período como ‘posto Ipiranga’, Paulo Guedes já deveria ter aprendido que a mesma não pode ser dissociada da política.

Os recentes episódios envolvendo o programa Renda Brasil, abortado antes de ser concebido, e ressuscitado no dia seguinte pelo presidente, e a obsessão em seguir com uma pauta para o renascimento do imposto mais impopular do país, uma CPMF com nome diferente, trazem o questionamento se de fato ele desenvolveu alguma sensibilidade política. Aparentemente, não.

No caso do programa Renda Brasil, cujo objetivo era encorpar ainda mais o bolsa família (e facilitar a reeleição de Bolsonaro), o desfecho inicialmente convergiu com os interesses do Ministério da Economia: até anteontem, não se falava mais nisso. Mesmo que o resultado tenha valido ‘dois pitos’ públicos do presidente, é possível imaginar que tenha sido um pedágio ‘pago’ de maneira consciente por Paulo Guedes para atingir seu objetivo. Coloca-se o ‘bode’ na sala, incomodando a todos, e logo a seguir retira-se o bicho de lá. O que não corrobora com essa tese é a demissão do secretário que supostamente liderou as análises, que obviamente careciam de sensibilidade social (tirar benefícios dos pobres e concedê-los aos paupérrimos), mas traziam à luz a verdade da matemática: não há recursos para ações que incrementem mais o gasto público no orçamento.

Dito isso, Bolsonaro, advertido por assessores próximos de que a ausência de uma plataforma assistencialista como essa poderia munir a oposição com um discurso fácil de ataque ao governo, mudou de ideia e já incumbiu o senador Marcio Bittar (MDB) para incorporar o tema na PEC do Pacto Federativo, da qual ele é relator, no Senado. Ao mesmo tempo, voltou atrás na demissão de Waldery Rodrigues, mal vista pelo mercado. O cartão vermelho foi rebaixado para amarelo e a dor de cabeça de Paulo Guedes permanece, com política e economia em dissonância.

A sequência dos fatos ainda nos brindou com o ministério da Economia anunciando que focará na aprovação da reforma tributária, prevendo a recriação da CPMF em contrapartida à desoneração de folhas de pagamento. Ao longo desses 18 meses, o assunto foi trazido à tona em diversas ocasiões e apanhou ruidosamente de todos os lados, não há qualquer clima para aprovação desse imposto. Surpreende a insistência, a tentativa incessante de esmurrar a ponta da faca. Como sabemos, o problema orçamentário brasileiro não reside na geração de receitas (através da arrecadação de impostos), mas no excesso de despesas. Uma reforma administrativa tão profunda quanto impopular deveria ser prioridade. A tributária pode ajudar a desatar o emaranhado de leis que confundem a todos e oneram o custo Brasil, mas não há espaço nesse momento para aumentar a já estratosférica carga de impostos, muito menos para reduzi-la em período de vacas esqueléticas, a solução possível seria no máximo uma simplificação com redistribuição da incidência de tributos.

Infelizmente, a agenda econômica não está clara. Guedes já perdeu colaboradores importantes que abandonaram o governo por não acreditar que as medidas reformistas necessárias seriam implantadas, gente que cansou de esmurrar a ponta da faca, e o próprio ministro citou o movimento como uma debandada.

Os deslizes em algumas declarações públicas que regularmente exigem uma explicação melhor, as colisões cada vez mais rotineiras com as expectativas do presidente, a atribulada relação com o Congresso, aliada à aparente inércia ou na melhor das hipóteses lentidão na condução das reformas,  tem feito que o mercado gradualmente se ‘desapaixone’ por Guedes.

Todo esse conjunto de impressões pode ser combatido com a tese de que Paulo Guedes é muito resiliente e que assistimos a sintomas normais de um relacionamento fadado à tensão entre o Ministério da Economia, o Congresso e a presidência da República, e que essas dificuldades tem sido superadas, mesmo com solavancos aqui e acolá. Essa pode até ser uma teoria correta, mas o fato é que a percepção de que o ministro é uma âncora de credibilidade para o governo, uma espécie de nome ‘indemissível’, torna-se cada dia menos verdadeira.

Eu mesmo, um entusiasta desde sempre do Paulo Guedes no ministério, hoje já não tenho certeza de que sua presença lá é necessariamente positiva. Eventualmente, uma correção de rota com alguém igualmente gabaritado para conduzir a Economia não causaria maiores estragos.

Falta-nos uma agenda clara com as prioridades diante do novo cenário pós pandemia e a transparência das ações na direção de sua execução. Tenho a incômoda sensação que navegamos ao sabor do vento. Não sei se o ministro pessoalmente tem paciência para lidar com a ‘presepada’ em que está metido. A continuarmos nessa toada, ele cairá de maduro e sua substituição nem será sentida (sempre dependendo obviamente do substituto). Tão importante quanto o discurso assertivo, é a execução clara do que se propõe. No caso particular da economia, precisamos de mais ação e menos retórica.

2 Comments
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2 Comentários

  1. sonia pedrosa

    18 de setembro de 2020 em 17:40

    É desesperador se sentir num barco à deriva.
    Que Deus nos proteja!

  2. joao fernando ferrerinha

    19 de setembro de 2020 em 07:18

    Caro Victor, a mim parece uma explanação clara do que vem ocorrendo.
    Temos a considerar que “as diferenças” entre Bolsonaro e Guedes, é que está tornando esta dupla viável.
    Se fosse fácil mudar o que está errado, com certeza já teria sido realizado.
    O que nos falta é ainda mais pressão popular, que convenhamos com esta Pandemia, será complicado acontecer.

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