Crônica de um pato gordo astronauta

Nosso país tropical não tem neve, nem montanhas altas. Esqui, só em plástico. Por causa disso, brasileiro só pratica esse esporte no exterior. Uma mistura de skate e surf nas montanhas – com a diferença de que você pode descer por vários minutos seguidos, dependendo da altura e da trilha que escolhe.

Minhas duas primeiras experiências com esse esporte foram fiascos completos (Colorado e Oregon). Desprovido de maiores intenções esportivas enquanto viajava pelos EUA, aceitei um ‘que tal esquiar’ e entrei pelo cano. Como não sou praticante de surf, nem do skate, se meter a esquiar sem aulas foi sinônimo de muitos tombos. Mas isso foi no milênio passado.

No começo desse século, criei vergonha e em uma dessas viagens de férias pelo Tio Sam, estipulei como meta aprender a esquiar. Nesse caso, com aulas, em Vermont. Após uma semana de sessões diárias matinais, me tornei um esquiador nível intermediário, deixei para trás os tempos de tombos espetaculares, comecei a entender a satisfação que esse esporte proporciona aos seus praticantes e por que tanta gente vive para isso nas regiões frias e montanhosas.

Depois disso, outras experiências na Europa, enquanto vivi por lá, na Argentina e novamente nos EUA, me garantiram certa prática, papelão não faço mais. Apesar de similar na essência, o manejo de um snowboard não tem nada a ver com o esqui – já escrevi sobre o assunto em um texto antigo (O pior snowboarder do mundo), e vou tentar descrever a experiência do último.

O esqui é um esporte caro, inacessível à maioria da população de um país tropical e pobre como o nosso. Implica primeiramente em fazer uma viagem internacional, alugar toda parafernália para praticá-lo, comprar roupas adequadas (que correm o risco de mofar posteriormente em seu guarda-roupa), estadia do hotel, diárias da estação/resort, cujos preços nunca são convidativos. A conta é bem salgada. Para a população local, é bem mais fácil e barato, normalmemte quem vive no estado ou província das estações obtém generosos descontos. O esporte é caro por que sua prática implica na construção de toda uma infra-estrutura para suportá-lo: teleféricos ou gôndolas que levam os praticantes ao topo da montanha e às diversas trilhas, e sua consequente manutenção, construções para atender aos esportistas no alto, veículos que aparam e removem a neve; enfim, compare esses detalhes com o ato de surfar, que requer apenas um calção de banho e uma prancha, e a diferença nos custos fica muito clara.

Nos Estados Unidos, apenas quatro dos cinquenta estados não possuem estações de esqui. Na Europa, a maioria dos países também conta com um numeroso séquito de praticantes. Nesses lugares, é comum ver pitoquinhos de dois, três anos, esquiando com habilidade surpreendente. Domar as montanhas faz parte da cultura.

Para você que nunca fez e acha que não leva jeito, vou logo dizendo: é fácil. Isso vindo de um não-praticante de esportes similares. Com uma semana de aulas, o sujeito já é capaz de se virar nas pistas verdes e azuis (intermediárias). Mas antes de falar sobre isso, é bom alertar sobre a parte mais desagradável do esporte: a roupa de astronauta, as botas de pato gordo, o fardo de carregar aqueles dois pedaços de madeira nas costas, e o frio congelante que não vai lhe perdoar no alto da montanha.

Primeiro, a roupa de astronauta. Nem pense em não utilizar as roupas adequadas, quentes e impermeáveis. Se possível, coloque um pijaminha térmico por baixo, vai ajudar. Protetor para as orelhas é mais que essencial, se não quiser sentí-las congeladas. As meias também são especiais e vão até o joelho. Luvas: eis um problema que a humanidade, com toda sua tecnologia avançada, não conseguiu resolver. Não importa qual seja o modelo, em algum momento as pontas dos seus dedos vão doer muito e você irá tirá-las para assoprá-los e esquentá-los um pouco. Hoje vendem aquecedores para as pontas dos dedos dos pés e para o dorso das mãos. Os primeiros você cola sobre as meias, nas extremidades dos pés, os últimos você coloca em um mini-bolso existente nos modelos de algumas luvas. Ambos ajudam, mas nada resolve o frio glacial que afligirá os dedos das mãos, prepare-se que dói. Não podemos nos esquecer da balaclava, aquela máscara que lhe deixa com cara de terrorista, somente com os olhos e nariz visíveis. Nem todo mundo usa, mas para quem está acostumado a temperaturas brasileiras, é indispensável. Se não for utilizá-la como tal, transforma-se em protetor para pescoço. É importante estar plenamente coberto quando estiver encarando o vento ou neve na cara. Qualquer parte exposta vai lhe incomodar. E finalmente, a dupla capacete + óculos. Ambos primordiais para a sua segurança. O primeiro irá lhe proteger contra eventuais pancadas, acidentes ou choques e o último lhe permitirá melhor visibilidade. A roupa de astronauta está pronta, com ela você se protegerá do frio, mas sentirá bastante calor nas pausas, quando entrar nos ambientes devidamente condicionados. Você estará suado(a), todo encapotado(a) e ao experimentar a temperatura de um ambiente fechado,
sentirá uma grande vontade de se livrar de tudo e ficar quase como veio ao mundo.

Vamos às botas: disparado o mais desagradável apetrecho do esporte. Imagine-se caminhando com duas botas de gesso. É isso. Elas foram feitas para proteger seus pés e evitar fraturas. São absolutamente inflexiveis e pesadas, seu lugar natural é sobre o esqui e não no chão. Ao vestí-las, você automaticamente passa a ter a agilidade de um pato gordo. Caminhar com elas em qualquer terreno é um fardo. Pior ainda quando você tem que levar o par de esquis e os bastões. Em muitas ocasiões, há uma bom trecho a ser vencido, até que você chegue à área de subida. Pense que você estará pagando seus pecados. Para piorar, elas escorregam muito no gelo. Cuidado para não protagonizar uma videocassetada.

Uma vez equipado o pato gordo astronauta, razoavelmente habilitado, é hora de aproveitar. Normalmente, em todas as estações há pistas fáceis e acessíveis aos principiantes. Comece por ali para ganhar confiança. É importante dizer que o conjunto pato gordo sobre o esqui não foi feito para cair. A normalidade é deslizar, mesmo para quem acha que não consegue parar em pé.

Mas, não se iluda: quedas acontecem. Semana passada tomei dois tombos espetaculares. Em um deles, achei que minha perna tinha passado pela cabeça, mas foi só impressão. Uma queda ridícula, decorrente da falta de foco. O segundo foi na saída do teleférico, momento propício para a queda dos que estão distraídos. Com a prática, elas se tornam um evento raro.

A regra básica do freio, colocar os esquis em posição de um pedaço de pizza invertido, funciona sempre. Os mais inseguros podem descer toda montanha nessa posição, evitando maiores velocidades. Perde-se a graça, ganha-se segurança. A cada dia adicional de prática, você evolui bastante. A observação dos experts esquiando, aos montes em qualquer estação, também lhe servirá de exemplo e inspiração.

O esqui exigirá de todos os seus músculos da coxa, panturrilha e das articulações do joelho. Mesmo se estiver em forma, seu corpo sentirá o baque de sessões diárias e lhe sinalizará com as dores do dia seguinte. O nível de dificuldade das pistas está diretamente relacionados ao esforço físico: quanto mais fáceis elas forem, menor ele será. A escala tradicional utilizada em todo mundo começa com as pistas verdes, de pouca inclinação e com neve homogênea, depois passa para as azuis, intermediárias com inclinação e ondulações maiores. As vermelhas vem a seguir intensificando o grau de dificuldade, máxima com as pretas. Não se meta a besta nessas se não esquiar muito bem, a menos que você goste de se espatifar. Geralmente, a maioria das pistas em qualquer estação é composta de verdes e azuis, o divertimento é garantido, mas é bom consultar os mapas para não ser surpreendido. Ainda quando estava me aperfeiçoando, há alguns anos, entrei por engano em uma pista vermelha, desci à custa de muito sofrimento.

A partir do momento em que você começa a agir naturalmente com o esqui, sem se preocupar em cair, e utiliza a parte anterior dos pés como acelerador, freio e direção, a satisfação será plena. Não se preocupe, isso acontece em pouco tempo. Deslizar sobre a montanha, pelas trilhas abertas em florestas de pinheiros ou eucaliptos, sentindo o vento bater levemente no seu rosto e quando possível tendo ao alto o céu azul contrastando com o branco da neve é realmente uma sensação que compensa todos os pré-requisitos desagradáveis e faz a alegria de qualquer pato gordo astronauta.

Como a descida pode levar muitos minutos, o esqui lhe proporciona além da sensação esportiva, similar a outros do gênero, a satisfação com o visual – talvez por isso tenha tantos aficcionados. Além de esporte, é um passeio.

Eu particularmente gosto de explorar as trilhas verdes nos meio das florestas, por mais que algumas vezes elas exijam ‘remadas’ em ocasiões de pista plana. É quase um tracking na neve, onde você pode parar e se espalhar por ela, que lhe servirá como um gigantesco colchão branco. Lembre-se, sua roupa é impermeável. É um ‘spa’ mental.

O ski também lhe proporciona aquela sensação boa de ser desafiado e vencer. Como existem diversas pistas possíveis em cada montanha, é comum você se deparar com algumas que lhe despertem um certo medo: ‘Essa eu não desço’. Isso no primeiro e segundo dias. No terceiro, você começa a pensar em descer…no quarto você vence seus receios e a montanha, desliza e manobra sobre o trecho, sem cair. É uma sensação de vitória que acontece com todos, cada qual dentro dos seus limites de dificuldade.

Na semana que passou eu experimentei pela primeira vez nevascas no topo da montanha, com pouquíssima visibilidade, neve e ventos fortes na cara. Foi sinistro, uma aventura e tanto. Na subida do teleférico, quando nos aproximávamos do cume e percebemos as condições climáticas se deteriorarem rapidamente, ficamos (eu e meu filho) bastante apreensivos. Lá em cima, estávamos com a ideia de ficarmos um tempo na cabana de aquecimento, rapidamente descartada quando vimos uma legião de baixotinhos se preparando para descer, sob a batuta de um instrutor. De jeito nenhum que nos apequenaríamos diante das criancinhas, e lá fomos nós. Exceto pelo frio mais intenso e pelo desconforto de levar neve na cara, correu tudo bem. Os óculos estavam lá para proteger nossa visibilidade naquele mundão branco.

A altitude também pode atrapalhar um pouco aos menos acostumados. No Colorado, por exemplo, os cumes das montanhas das diversas estações chegam a 3.500m, não é pouca coisa. Bem acima do ponto mais alto do Brasil, o pico da Neblina (3.014m). Como você está se exercitando em um lugar com menos oxigênio, pode não se sentir bem ou cansar mais rápido, o que é normalmente meu caso, refletido em respirações mais ofegantes.

Enfim, esquiar lhe apresenta uma série de incômodos e testa a sua resiliência. Depois de horas de exercício, visualizar-se encarando a saga do pato gordo astronauta carregando o par de esquis nas costas não é nada agradável, assim como o despertar com dores nas articulações. Mas o saldo é muito positivo. A combinação de passeio e prática de esportes, o visual espetacular do céu azul, com o infinito de montanhas e o branco da neve entre as árvores, a satisfação de superar desafios antes tidos como impossíveis, tudo isso transforma esse esporte em algo muito especial.

Eu espero ter condições de seguir praticando, à medida que o tempo, a saúde e orçamento me permitam. E recomendo fortemente aos que tem condicões de fazê-lo, mas nunca fizeram. Coloquem na lista. Valerá muito a pena.

1 Comment
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1 comentário

  1. sonia pedrosa

    16 de janeiro de 2017 em 10:22

    Ótimo texto, Victor!
    Eu nunca esquiei por um único motivo: medo de levar uma queda e estragar o resto da viagem! rsrsrs
    Beijão,
    sonia.

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