Crônica de inverno: o pior ‘snowboarder’ do mundo!

Eu já sabia esquiar. Tinha aprendido a duras penas, é verdade. Mas depois de muitos tombos espetaculares, tomei uma semana de aula e nunca mais passei vergonha. Ou seja, na neve eu consigo descer uma montanha. Até agora me questiono por que é que fui me ‘meter à besta’ e ‘andar de snowboard’, se já esquiava razoavelmente bem. Não tenho resposta. Mesmo um ser humano ‘não idiota’, grupo ao qual eu julgo pertencer, às vezes é capaz de atitudes imbecis. Minha empreitada no ‘snowboard’ foi um desses momentos tolos, sem explicação, que às vezes protagonizamos na vida.

Aterrisamos em Bariloche pela primeira vez com o objetivo primário de esquiar por uma semana. O secundário era empanturrar-se de ‘parrilla’. Estávamos eu, meu cunhado, Felipe, de 18 anos, já versado na prática do snowboard, e meu filho mais velho, Erik, de 8 anos, em um primeiro momento também aspirante a ‘snowboarder’. Afinal, ‘ski’ é coisa para essa geração mais velha…talvez influenciado pelo entusiasmo dos mais jovens, decidi que os acompanharia no ‘snowboard’, não sem antes fazer umas aulas, decisão que contrariava meu filho, que inocentemente julgava que bastava andar um pouco de ‘skate’ para ser um quase-mestre no ‘snow’. Crianças…

Chegamos no Cerro Catedral e fomos logo alugando os equipamentos de ‘snow’. Na base da montanha estavam as escolas que ofereciam aulas para todos os níveis, desde os principiantes aos mais avançados.  Ali também havia duas ‘pistas’ onde os iniciantes praticavam. A empolgação e ansiedade juvenis dos meus dois companheiros de viagem fizeram com que eu negligenciasse uma regra básica: se você não sabe nada, antes de subir a montanha, faça aulas. Caí na conversa do meu cunhado, ávido que estava para tomar o teleférico e subir de uma vez: ‘Pode deixar que eu explico tudo para vocês lá em cima, é fácil! ‘. Sei…

E assim subimos. Eu e meu filho, marinheiros de primeira viagem no ‘snowboard’. Até aquele momento, eu não tinha noção do que estava por vir. Somente nos damos conta de que somos protagonistas de tolices quando é tarde demais para impedí-las. O teleférico – uma cabine que acomoda quatro pessoas – nos levou em uma viagem de quase 10 minutos para a estação ‘La Roca’, a 1800 metros. Em Bariloche, na maior parte da temporada não é possível chegar à base esquiando, o ponto de partida fica no meio da montanha. Nessa estação, há um pista verde com uns 50 metros de comprimento e uns 25 de largura, com um leve declive. Fácil. Para iniciantes.

O snowboard tem uma característica que de ‘bate-pronto’ me desagradou: uma cordinha, que sai do conector de uma das botas, preso no ski, e que deve obrigatoriamente ser amarrada ao redor da perna, por questão de segurança. Vale-se de uma presilha em forma de tridente que faz um ‘clic’ quando está firme na outra ponta. O problema é que vestido para neve, com botas e luvas, quem  não é habilidoso com as mãos, torna-se quase um portador de Parkinson. É o meu caso. Amarrar aquela cordinha na perna, algo banal para um ‘snowboarder’, já começava como imenso desafio para mim.

No topo da pista de 50 metros, meu cunhado passava as primeiras instruções aos seus dois alunos. Em vão. Não conseguíamos nos levantar. Com o snowboard, o sujeito deve caminhar com uma bota presa à tábua e se movimentar com a outra perna solta, até o momento em que deseje ‘deslizar’. Aí, ele deve sentar-se, prender a segunda bota no conector e começar. Bem, prender as botas também me pareceu um suplício, pois com toda a indumentária das neves, conectá-las à tábua, em quatro pontos, é um exercício que exige habilidade e alguma flexibilidade. Na falta da primeira, você tira as luvas para ficar com as mãos livres. No frio, rapidamente elas congelam. No momento em que você está pronto para começar, deve deixar a posição de ‘sentado com as pernas esticadas sobre a tábua’ para ‘em pé, deslizando sobre a tábua’. Por quase uma hora tentei fazer essa transição simples, e não consegui. Mal me levantava, caía.

Fomos obeservados à distância por um sujeito que se aproximou de mim e perguntou se desejava ter aula. Ele tinha um amigo que subiria em 15 minutos e poderia passar 2 horas de instruções por um preço de um aluno. Já desesperançoso com o meu instrutor, Felipe, que estava doido para nos deixar e subir o resto da montanha para se divertir, eu topei. Avisei meu filho que faríamos duas horas de aula e aguardei. Algum tempo depois, chega o instrutor independente, Martin o nome dele. Não saberia reconhecê-lo na rua, pois na neve você anda encapuzado, com óculos escuros e o pescoço coberto. E fomos nós mais uma vez, agora com um instrutor profissional, subir a pequena pista para praticar o ‘snow’, após algumas instruções básicas de posicionamento sobre a tábua.

Para controlar o snowboard, você precisa utilizar os pés, alternando movimentos que pressionam os dedos e o calcanhar, com o pé direito, esquerdo ou ambos. Se fizer isso bem,  está tudo ‘dominado’. Fácil, não é? Parece com esses ‘joysticks’ de ‘playstation’, com uns 8 botões disponíveis e uma infinidade de variações possíveis. Eu sou do tempo do Atari. Uma manivela e um botão.

Continuei com problemas para deslizar. Me levantava e caía, levantava e caía. Um suplício. Meu filho já se saía melhor. Na primeira vez que consegui me levantar e deslizar….’strike’! Desequilibrado, fui como um trem desgovernado para cima de uma moça, brasileira por sinal, que aprendia a esquiar na área. Caímos os dois. Constrangido, pedi desculpas e retornei à minha sina. Felizmente, ninguém se machucou.

Após duas horas de ‘instrução’, evoluí pouco. Me sentia um tanto frustrado. Que ideia de jerico essa de resolver aprender ‘snow’. O tal instrutor, Martin, bravo segundo meu filho, e estúpido segundo o meu critério, perguntou se queríamos subir a montanha pela trilha ‘Dente de Caballo’, que nos deixaria uns 500 metros acima, descendo de snowboard até a estação La Roca. Era uma pista azul, nível intermediário. Apesar de considerar a decisão um tanto prematura para quem ainda engatinhava no snowboard, topei. E marcamos de subir às 14 horas.

Almoçamos e nos preparamos para a empreitada. Eu e meu filho, acompanhado do instrutor estúpido. O teleférico dessa vez era uma cadeira que acomodava três pessoas. Para principiantes, tanto do esqui, quanto do snowboard, o momento de descida da cadeira é sempre de alguma tensão, pois você obrigadoriamente deve deslizar, não é possível sair andando. No caso do ‘snow’, o sujeito está com uma bota presa à tábua, e deve colocar a segunda perna sobre a mesma e sair deslizando. O momento de descida seria crítico para mim. E infelizmente, não desci. Rolei. Estatelado no chão, quase fui pego pela cadeira que vinha atrás. Nessas horas, você sempre tem a impressão que outros estão rindo. É possível que não tenha sido apenas uma impressão. Me acomodei fora do alcance das cadeiras, preparando-me para deslizar à esquerda, onde meu filho e o instrutor me esperavam. Dali partiríamos para uma descida de 400 ou 500 metros, desafio que me causava um enorme desânimo. Não satisfeito com a constrangedora saída da cadeira, perdi novamente o controle do ‘snow’ e mandei o segundo ‘strike’do dia, dessa vez acertando dois pinos, ou melhor duas pessoas. Meu filho e o instrutor foram derrubados sem dó. Um papelão.

Àquela altura eu me xingava mentalmente pela sucessão de equívocos do dia: escolher o ‘snowboard’, subir na montanha sem a devida preparação, aceitar descer por uma trilha azul. De quebra, ainda tinha que aguentar o instrutor dizer algo do gênero: ‘Ânimo, no estoy vendo la atitud, quiero la atitud…!’, como seu eu fosse um atleta olímpico em busca do ouro. A primeira parte da trilha foi uma sucessão de ‘pacotes’. Me irritava o instrutor buscando aprimorar minha técnica: ‘Los pués para arriba, los pués para arriba’. No caso, ‘pués’ era como ele julgava ser a tradução de ‘piés’ em português. Confesso que a partir do quintou ou sexto ‘pués’, fiquei com vontade de mandá-lo polidamente à merda.

Com o único objetivo de chegar à estação La Roca, quatrocentos metros abaixo, e sem nenhuma intenção de tornar-me um snowboarder, avisei ao instrutor que cuidasse do Erik, que eu me viraria sozinho. Pensei seriamente em largar tudo e descer pelo teleférico ou a pé. Mas isso foi rapidamente descartado. Afinal, seria um péssimo exemplo para o meu filho. Um fracassado que desiste das coisas? De jeito nenhum. Nem que fosse rolando os 400 metros, eu chegaria à base.

Tentei me concentrar nas explicações do bufão  e a partir da segunda metade da pista passei a não cair mais com tanta frequência. Mas estava longe de obter qualquer satisfação com aquilo. O melhor do esqui ou do snow é você deslizar sem a preocupação em cair, fazê-lo tão naturalmente como se estivesse andando ou correndo e por conta disso desfrutar da paisagem e do vento soprando sobre a face. Naquele dia, eu aproveitava a paisagem após as quedas. Deitava-me espaçosamente sobre a neve e contemplava o constraste do branco da montanha sendo cortado pelo azul do céu. Com isso, ganhava o estímulo necessário para os tombos subsequentes. Foram tantos que a neve entrava na roupa, provocando um frescor indesejável. O contato frequente das mão com a neve, necessário para armar e desarmar as botas, também eram incômodos, pois as pontas dos dedos, mesmo sob as luvas, permaneciam geladas.

Deslizei pelos último cem metros e fui tombar a uns trinta da área de escape para a estação, à esquerda. Em frente, o declive continuava. Quase a meu lado, uns cinco metros à minha direita, meu filho, também caído, terminava sua jornada. Tão próximo que estava do fim, decidi fazê-lo a pé, desvencilhei-me do ‘snow’ e fui ajudar o meu filho a se levantar. Me esqueci da maldita cordinha, aquele que fica presa na perna, e a tábua passou a deslizar sozinha, ganhando cada vez mais velocidade, em direção ao declive. Saí em disparada atrás dela, e de longe escuto alguns ‘vigias’ gritando:  ‘Peligro, la tabla, la tabla!!!. Um homem se atirou como um goleiro em um penalti tentando agarrar a tábua, em vão. Ela passou por ele. Felizmente, um dos vigias a interceptou a poucos metros antes dela ganhar a descida, onde fatalmente ela iria parar 300 metros ladeira abaixo. Cheguei ofegante para resgatá-la e ouvi um sermão. O que eu havia feito era muito perigoso, poderia machucar alguém. Tomaram o número do meu ticket e recebi uma advertência formal. Mais uma dessas, seria suspenso do complexo. Maravilha. O instrutor viu que estava em apuros e se aproximou. Os ‘vigias’ perguntaram de imediato: ‘E você, está fazendo o que sem a cordinha? ‘. Ele ligou o ‘veja bem’, mas não adiantou. ‘Também será advertido! ‘. Tive vontade de rir, mas contive-me.

Encerrava-se assim de maneira melancólica a minha meteórica carreira de ‘snowboarder’. O pior do mundo. Meu filho, sabiamente e para o meu alívio, decidiu aprender ‘ski’ pelo restante da semana. E dessa vez, nada de instrutores independentes. Ele ficou dois dias na base da montanha antes de subir, na escola ‘oficial’ do Cerro.  Eventualmente, se tivesse seguido à risca o que é aconselhável para iniciantes, e tomado pacientemente algumas aulas, talvez minha experiência não tivesse sido tão desastrosa. Mas como não há segunda chance para se causar a primeira impressão, decidi que ‘snowboard’…nunca mais.

Por mais que pareça óbvio, minha experiência tragicômica reforçou algumas verdades incontestáveis: não se meta a fazer o que não sabe. E se cair na tentação, prepare-se direito. Além disso, depois de um certo período da vida, é muito dispendioso desenvolver-se em assuntos em que você é uma nulidade, é mais efetivo aprimorar seus pontos fortes…

4 Comments
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4 Comentários

  1. Carol Freire

    29 de julho de 2012 em 12:36

    Vítor, como sempre, ótimo texto. Parabéns!
    Concordo plenamente que esportes de neve são para poucos que possuem o devido talento. Sua narrativa lembrou-me da primeira e única vez que tentei esquiar (e olha que era ski comum e não snowboard). Senti-me como uma astronauta com toda aquela roupa pesada, e mais caía para trás do que esquiava para frente. Pena, pois hoje não consigo acompanhar a aventuras na neve de minha filha de 7 e meu filho de 5 anos…Mas confesso que neve não é mesmo a minha praia.

  2. Sergio

    31 de julho de 2012 em 21:09

    Victor,
    Confesso que dei algumas risadas com seu texto; foi impossível ler sem imaginar as cenas!! Mas se de fato, por um lado, “não há segunda chance para se causar a primeira impressão”, por outro há sempre a possibilidade de um “feliz recomeço”… quem sabe se vc tentar “comecar pelo começo” isso lhe traga uma melhor experiencia, afinal, vc não está tão velho a ponto de desisitir de aprender truque novo – pergunte isso ao seu filho e garanto que ele vai concordar comigo!! Abcs

    1. Victor

      4 de agosto de 2012 em 13:23

      Sergio, nesse caso teria duas opcoes para investir meu tempo…para aprender algo que nao sei, com todos os percalços…ou aprimorar algo que eu já sei….

  3. Isabel Lopes

    4 de outubro de 2013 em 22:29

    Victor,
    Como sempre seus textos são incríveis …e esta sua narrativa foi impar, impossível não dar boas gargalhadas com o episódio dos “piés”…
    Pela minha experiência, quando somos jovens é muito mais fácil aprender qualquer esporte.
    Lembro-me de ter participado de uma reunião no Clube Med em Angra dos Reis, e quando vi algumas pessoas praticarem ski aquático, fiquem louca de vontade, apesar de não fazê-lo há algumas dezenas de anos. Quando tentei, subi tranquila e não passei vergonha perante a plateia, pelo contrário…
    É igual a andar de bicicleta, quando se aprende… nunca mais se esquece…

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